
Crítica a O Falcão e o Soldado do Inverno.
No dia 23 de abril foi exibido o 6.º e último episódio da série televisiva O Falcão e o Soldado do Inverno no serviço de streaming Disney+, tendo uma semana depois sido transmitido um documentário sobre o seu making of na série Unidos na mesma plataforma. A série, realizada pela canadiana Kari Skogland, baseia-se em conhecidos personagens da Marvel, que já tinham sido transpostos anteriormente para o Universo Cinematográfico Marvel (UCM). O Falcão (Samuel Thomas Wilson) foi criado por Stan Lee e Gene Colan, tendo direito à sua primeira aparição na revista norte-americana Captain America (vol. 1) #117 em setembro de 1979. Registe-se ainda que o personagem assumiu a identidade do Capitão América na revista All-New Captain America #1 em 12 de novembro de 2014, regressando mais tarde ao seu alter ego habitual. Quanto a Bucky Barnes (James Buchanan Barnes), foi criado por Joe Simon e Jack Kirby para a revista Captain America (vol. 1) #1 de março de 1941. A sua identidade como Soldado do Inverno foi criada por Ed Brubaker e Steve Epting para a revista Captain America (vol. 5) #1, publicada em 17 de novembro de 2004. Também ele assumiu a identidade de Capitão América em determinado momento, num arco que se iniciou na revista Captain America (vol. 5) #34 em março de 2008.
A série explora diferentes géneros, agradando provavelmente o 2.º episódio mais aos que gostam de comédias e os 1.º e 6.º aos que gostam particularmente de ação. Na minha opinião, o 5.º episódio sobressai. É nele que decorre o julgamento de Jonh Walker, entretanto ex-Capitão América, que assassinou uma pessoa, referindo que o fez porque foi treinado para o fazer.
O Falcão e o Soldado do Inverno trata de assuntos sérios e reais como a temática da migração em geral e a questão dos refugiados em particular. Nesta ficção, milhões de pessoas desapareceram (foi um evento em que Thanos matou metade da população mundial, a qual foi restaurada por Bruce Banner cinco anos depois), tendo os países aberto as suas fronteiras aquando do seu desaparecimento. Com o seu regresso, muitas são expulsas dos países onde fizeram a sua casa neste período. Tal como na realidade, existem campos de concentração para colocar os que “não são bem-vindos”. Quem está contra esta política é o grupo chamado Apátridas, que tem como lema “um povo, um mundo”.

Mikhail Bakunin, filósofo russo do século XIX, escreveu que “em comparação com este movimento universal, o que foi convencionado chamar de patriotismo não é senão uma regressão sob todos os pontos de vista. É preciso ser ingénuo entre os ingénuos para ignorar que os catecismos do cidadão pregam o amor pela pátria para servir o conjunto dos interesses e dos privilégios da classe dirigente, e que eles procuram manter, em proveito dessa classe, o ódio, de fronteira a fronteira, entre os fracos e os deserdados.”
Em oposição, Hannah Arendt, filósofa alemã do século XX que escreveu o livro Nós, os Refugiados, dizia que “a cidadania é algo fundamental para a garantia dos direitos humanos e que essa é uma condição que inviabiliza o acesso dos grupos de apátridas e dos refugiados aos direitos básicos”.
No entanto, na série, o movimento apátrida (com a sua líder Karli Morgenthau a ser livremente inspirada no vilão tradicional da BD Karl Morgenthau, o Flag-Smasher) é mal explorado e frequentemente secundário ao enredo. O espetador nunca sente que se trata de um grupo mundial, embora a série indicie nesse sentido.
A série também aborda a experimentação em negros para a criação de super-soldados. Sendo um evento baseado na minissérie de BD Truth: Red, White & Black de Robert Morales e Kyle Baker, espelha parcialmente a realidade norte-americana com o Estudo da Sífilis Não Tratada de Tuskegee, conduzido entre 1932 e 1972 pelo United States Public Health Service (PHS) e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), cujo propósito era observar a história natural da sífilis não tratada. No estudo de Tuskegee, aos negros que participaram no estudo, foi-lhes dito que estavam a receber cuidados de saúde gratuitos, quando na verdade não estavam a ser tratados.
Na série televisiva, a experimentação em negros para a criação dos super-soldados é o mote não só para apresentar aos espetadores o personagem Isaiah Bradley (protagonista da minissérie de BD supracitada), como o seu neto Eli Bradley (na BD, o segundo personagem da Marvel a usar o nome de Patriot, um dos elementos fundadores dos Young Avengers de Allan Heinberg e Jim Cheung).
É também o mote para abordar o racismo. Por um lado, Isaiah – preso durante 30 anos pelo governo, após as experiências – diz a Sam que não só o governo nunca permitirá que exista um Capitão América negro, como nenhum verdadeiro negro quererá ser alguma vez o Capitão América, o símbolo de uma nação que não representa a população negra que habita naquele país. Por outro lado, em frente à casa de Isaiah, a própria polícia intervém quando Sam e Bucky conversam no exterior, partindo do pressuposto que o indivíduo negro esteja a incomodar o branco, até se darem conta que o negro em questão é um Vingador.

Destaque ainda para o ator Daniel Brühl, que protagoniza o Barão Zemo, com uma brilhante atuação. O personagem do UCM, distinto do vilão nazi da BD, consegue criar empatia por parte do público, adquirindo as suas ações muitos tons de cinzentos, sem que promova a supremacia. Gostava que a série lhe tivesse dado ainda mais relevância.
Mais do que uma série de pura ação, O Falcão Negro e o Soldado de Inverno é uma série sobre aceitação e alguma reflexão sobre problemas reais. A grande motivação e força é a emancipação de Sam Wilson como herói negro. Na verdade, de um ponto de vista pragmático, é a forma de como passar o testemunho do Capitão América de Steve Rogers a Sam WIlson, de modo a que este seja o Capitão América e não o Falcão na próxima vez que surgir no grande ou pequeno ecrã.

Outras questões ficaram (ainda?) sem resposta – como John Walker ter recebido três medalhas no Afeganistão por ações desconhecidas, sobre as quais disse não ter agido corretamente – e outras personagens foram apresentadas (como Valentina Allegra de Fontaine, a Madame Hydra da BD – sendo que a estreia do seu papel estava inicialmente planeada para o filme da Viúva Negra) ou reformuladas (como Sharon Carter se tornar a Power Broker), deixando sementes para futuros desenvolvimentos (à semelhança do que já tinha ocorrido em WandaVision).
Quanto à realização, destacam-se os planos aproximados, como se a realizadora quisesse que os espetadores conhecessem os pensamentos mais íntimos dos personagens.
Entretanto, a Disney+ anunciou que o primeiro episódio da série foi a estreia mais assistida de sempre da plataforma, bem como que a série foi a mais vista de sempre.

Apaixonado por BD, o seu livro preferido é “Maus” e tem mais livros que amigos (embora goste de amigos). Também acha que alguém devia erguer uma estátua ao Alan Moore. Dá-lhe muito prazer ver séries e filmes baseados nas mais variadas bandas desenhadas.