Análise de Gus vol. 1: Nathalie.
Três “desperados”, cowboys fora-da-lei, barba rija, pele seca e gretada, mãos calejadas, roupa empoeirada pelas deambulações no Oeste Selvagem. São Gus, Clem e Gratt, adeptos de assaltos a bancos e de ataques a comboios em movimento. E para afastar o tédio, uma ida à vila mais próxima em busca de álcool e de mulheres é o suficiente.
Mas se Gus e seus companheiros têm tudo para levarem uma vida simples e para serem o paradigma do cowboy solitário, depressa percebemos que eles se afastam dos cânones do Western e substituem, com gosto desmesurado, o cheiro da pólvora e dos cavalos por aromas mais florais e subtis. Em suma, nem dinheiro nem fama; o que eles querem é mulheres! E com as mulheres, nada é simples!
Esta série, criada em 2007 e da qual a Gradiva publica agora o primeiro volume, tem como argumentista e desenhador Christophe Blain (conhecido em Portugal pela série Isaac, o Pirata – ou o novo Blueberry com desenhos de Christophe Blain e argumento de Joann Sfar não continuasse ausente do panorama editorial português) que nos apresenta aqui as primeiras cinco aventuras do bando – Nathalie; Gus, Clem, Gratt; El Dorado; Linda McCormick; Isabella – envolvidas num fino manto de humor burlesco.
Vamos às histórias!
Nathalie:
No meio do deserto, Gus acelera o galope da sua montada até chegar a um casebre perdido no meio do nada. Lá dentro, os seus companheiros Clem e Gratt jogam às cartas. Gus exibe-lhes uma carta de Nathalie, a sua mais que tudo e explica-lhes que a conheceu há cinco anos em Cincinnati. Sem desviarem o olhar do jogo, os amigos perguntam-lhe: “Saltaste-lhe para cima?”
Por Nathalie, Gus é capaz de tudo, até de tomar banho e de se embonecar todo sempre que ela lhe marca um encontro. Ele só pensa nela e na expectativa da próxima vez que a possa ver. Num desses encontros, Nathalie anuncia-lhe que está noiva (curiosamente, de um homem que tem a protuberância nasal tão desenvolvida quanto a de Gus). Mas a novidade não arrefece os ímpetos de Gus que não permite que tiroteios, lutas e assaltos a bancos o afastem dos seus pensamentos. E faz muito bem pois, quando menos a espera, a sorte espera por ele numa ruela escura…
Gus, Clem, Gratt:
Nesta segunda história, entre dois assaltos a comboios orquestrados minuciosamente, Gus não perde a oportunidade de procurar desesperadamente a sua alma gémea. Mas na profissão de fora-da-lei, quando o pensamento deambula por umas sinuosas coxas femininas ao invés de se concentrar nos assaltos, o resultado paga-se caro…
El Dorado:
Esta história, no seguimento da linha de acção dos protagonistas, também se poderia chamar “O Paraíso”.
Gus consegue convencer os companheiros a visitarem a cidade de El Dorado onde, segundo consta, todas as mulheres gozam de uma total liberdade de comportamentos. Gratt adere de imediato à ideia, mas Clem, casado e pai de família, reserva o direito de aparecer exclusivamente para o assalto ao comboio e aos bancos.
No entanto, a vida dá muitas voltas e, por vezes, os mais recatados são aqueles que sabem aproveitar melhor a vida, ao contrário dos adeptos da bravata…
Linda McCormick:
Gratt adora enrolar-se com Linda. Seja numa cama de palha num celeiro ou noutro lado qualquer, a ideia do reencontro deixa-o em polvorosa. Mas não há linda sem senão! No auge dos momentos íntimos, ela emana um odor deveras incomodativo.
Desalentado, Gratt quer terminar a relação, mas não sabe como. Ainda para mais, Linda ameaça matá-lo. Para além disso, ela é casada com um juiz e o escândalo seria enorme, sobretudo porque Gratt, Clem e Gus são agora os xerifes da cidade…
Isabella:
Nesta última história, os três heróis parecem ter encontrado o refúgio perfeito. E de tal modo é assim que até resolvem decorá-lo.
Mas Clem parece afastar-se cada vez mais do trio e só aparece no momento exacto de fazerem um novo assalto. Ao que parece, está a dedicar-se intensamente à mulher e filha. Mas no quarto do primeiro andar do refúgio ele esconde um segredo que apanha os companheiros desprevenidos…
Por acaso, as paisagens são as típicas de um western. Por acaso, as acções e as diferentes maneiras de as resolver também são as típicas de um western. Por acaso, assistimos a assaltos a bancos e a comboios, a sessões de pancadaria em saloons, a perseguições a cavalo e a balas a assobiarem aos ouvidos, tudo cenas típicas de um western. Mas não são as regras típicas do Western que vemos aqui realizadas. Na verdade, o que faz avançar toda e qualquer história de Gus é a obsessão que o trio de bandidos tem por mulheres.
Portanto, se estão à espera de uma paródia ao Western estilo Lucky Luke ou derivados, desenganem-se! Na verdade, através da premissa feminina, Christophe Blair consegue refrescar o género, ajudado em muito por uma espécie de humor burlesco.
Como já se disse, os protagonistas são três cowboys de nomes monossilábicos, ora foras-da-lei ora xerifes, que são simultaneamente briguentos e de coração mole, mas com preocupações completamente desfasadas dos cânones do género. Eles andam sempre mais atormentados pelas suas conquistas amorosas do que preocupados com acertos de contas, duelos ou assaltos a bancos.
O tom da narrativa é simples e ligeiro. Os subterfúgios cómicos são eficazes (o jogo entre o tempo e a duração das acções, o comportamento desleixado dos protagonistas bem mais à vontade a lutarem do que a cortejarem donzelas), as histórias são ritmadas, a repetição de situações é feita de forma hábil e os segredos que todos eles escondem uns dos outros (sempre relacionados com mulheres) é algo que acrescenta uma leve intriga à narrativa.
Nesse sentido, a última história fornece ao álbum a unidade que parecia faltar, fechando ou abrindo novos ciclos na continuidade da narração.
Quanto à forma, o traço de Blain é moderno e muito estilizado, dinâmico e reduzido ao essencial. Ele não perde grande tempo com o detalhe dos décors ou dos personagens (que são facilmente identificáveis por características física exageradas, como é o caso do nariz de Gus, os cabelos ruivos e eriçados de Clem ou o prognatismo de Gratt). Na verdade, Blain está mais preocupado com o movimento dos personagens e com as expressões exuberantes que transmitem o espírito burlesco do conjunto.
Por fim, uma palavra para a colorização de Walter em perfeita consonância com o traço de Blain. Simples e eficaz. Cada prancha tem uma paleta de cores muito reduzida, limitando-se a 3 ou 4 na maior parte das vezes. E sempre sólidas, sem gradações, o que se pode constatar logo na capa e que será a imagem de marca ao longo da série.
Gus é uma obra original a vários níveis, tanto narrativos como artísticos. Este primeiro álbum lê-se muito rapidamente e, à falta imediata de um segundo, terceiro e quarto, resta-nos lê-lo várias vezes e esperar pelas novas aventuras amorosas que aparecerão nos próximos.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.
Caro Francisco, gosto muito dos seus textos, mas está a escrever sobre a edição francesa, a que, aliás, pertencem as imagens que apresenta. Sobre a edição portuguesa, nem uma palavra. Tome estas breves notas, por favor, de uma forma construtiva, o Francisco é uma lufada de ar fresco no panorama da crítica de BD em Portugal. Ah, já agora, acho que seria avisado pôr aí uns “spoilers”, nunca sei onde posso parar sem estragar o prazer de uma leitura futura.
Caro Rui:
O Francisco fez a crítica sobre a edição portuguesa, que foi a que leu. De qualquer forma, seria irrelevante, dado ter optado por centrar a sua crítica sobre a obra em si e não na tradução, legendagem ou outras particularidades da edição portuguesa, dado não ser essa a abordagem que utilizou.
Como a nossa política editorial não permite repetição de imagens nos artigos (para além da capa nacional) e as imagens das edições portuguesas já são utilizadas nos artigos de divulgação (para os quais este artigo tem um link, obviamente, para que os interessados possam apreciar as mesmas), quando se realiza uma crítica no nosso site tem-se 3 opções: ou não ilustrar ou tirar fotografias da edição nacional (que, devido a não terem sempre a qualidade desejada, são frequentemente rejeitadas pelo site) ou usar iconografia estrangeira (que não nos aborrece nada, pois até pode ser utilizada para comparar a legendagem e tradução nacional com a original e de outros países, caso haja alguém interessado em fazê-lo). Aliás, tudo isto já foi explicado ao (e compreendido pelo) Rui Cartaxo no passado.
Por fim, sobre os spoilers, é novamente a política editorial do site não alinhar com os vulgares sites de entretenimento que utilizam ou não o aviso de spoilers. O aviso de spoilers não tem cabimento num site que pretende realizar um trabalho sério de crítica, seja ela uma obra recente ou antiga.
Boas leituras,
ok, entendida a explicação para as imagens, o link, e os spoilers. Bom trabalho!
Caro Ruca,
Com a explicação detalhada do Nuno Pereira de Sousa vou abster-me de repetições.
Apenas umas breves linhas para lhe agradecer as palavras que me dirige a título pessoal e dizer-lhe que, para mim, é um puro prazer poder falar de BD em sítio tão apropriado e uma satisfação perceber que as minhas análises fazem algum sentido.
Abraço