Peter Pan: Um Conto de Fadas Sombrio!

Peter Pan: Um Conto de Fadas Sombrio!

Análise de Peter Pan vol. 3: Tempestade.

Ele há momentos que definem todo um futuro. Uns chamam-lhes “o momento da mudança”, outros “o momento crucial” ou “o momento determinante”.

Pois bem! Se quisermos definir este terceiro álbum de Peter Pan tendo em conta toda a série, podemos dizer que se trata do álbum da mudança, crucial e determinante que irá definir para sempre não só o futuro de Peter como o da Terra do Nunca e, in extremis, o de Londres ou do mundo real (cf.artigos O perturbador e fascinante Peter Pan e Peter Pan entre loucura e esquizofrenia).

Aliás, o título Tempestade (cf. imagens do miolo e sinopse da recente reedição nacional aqui), por si só, é revelador do que se disse. A tempestade física vai assolar a Terra do Nunca, mas é a tempestade em sentido figurado que irá trazer os ventos da mudança, uma mudança moldada por um destino negro, por um momento de trevas, pelo tal momento determinante.

Vamos à história!

Ao longo do caminho que os conduz aos índios, Pan ensina Peter a tocar a sua flauta especial, a syrenx. Acompanhados de vários membros do feérico povo imaginário, eles levam a pequena índia Lys ao seu clã. Com a pronta intervenção desta, os índios recebem-nos amigavelmente. E para festejar o regresso da filha do chefe, sã e salva, organizam um banquete à volta da fogueira.

É tempo de Peter, agora chefe do povo imaginário, e de Pan conviverem sob a luz bruxuleante do fogo, propensa a revelações e confidências. E se Peter fala da sua mãe (ou da ideia longínqua e deturpada que tem dela), Pan fala da perda da noção de tempo que acontece na Terra do Nunca e das memórias que se desvanecem.

Entretanto, um estranho cerimonial tem início. Peter percebe que se prepara o seu casamento com a índia. Ele recusa a coroa de penas que lhe oferecem e rejeita a filha do chefe. Pan fica irritado com o que acaba de se passar. Peter acaba de cometer uma afronta para com os índios e ambos têm que abandonar o acampamento para nunca mais voltarem; caso contrário, serão mortos!

Enquanto isso, os piratas continuam à espera de Peter na ilha e acabam por esbarrar com duas fadas. Logo surge uma ideia diabólica com o intuito de atrair Peter: capturar uma das fadas para que o rapaz a venha salvar e deixar a outra fugir de modo a ir avisar Pan e o seu grupo.

Avisados, Peter e Pan engendram um plano com a ajuda das sereias. Tudo o que o capitão dos piratas quer é o tesouro do povo imaginário, mas este tesouro não é exactamente o que ele espera encontrar. Na verdade, Pan explica a Peter que o tesouro é composto pelo imaginário e pelo sonho do capitão e que esses são os elementos vitais que alimentam e perpetuam a vida na ilha. Se o capitão descobrir de que é feito o tesouro, a sua desilusão acabaria por matar todos os membros do povo imaginário – gerados pela imaginação humana, daqueles que ainda conseguem sonhar e inventar.

Surge então a ideia de dar ao capitão exactamente aquilo que ele quer, um tesouro de ouro e jóias, mas resgatado pelas sereias dos inúmeros destroços de barcos naufragados que jazem à volta da ilha. O verdadeiro tesouro continuaria assim protegido pelo povo imaginário.

Agora há que ir salvar a fada Mirko das mãos do Capitão. Depois de aturados preparativos, dirigem-se para a praia onde o galeão pirata está fundeado. O capitão chega de chalupa com os seus homens. Pan lidera o povo feérico de modo a que Peter fique resguardado na retaguarda. Prepara-se a transacção. Pan negoceia. Eclode uma violenta tempestade que a todos fustiga sem favorecer nenhuma das partes. No meio da enorme confusão, Pan é gravemente ferido!

Desesperado, Peter só vê uma solução para salvar o melhor amigo: recorrer ao Sr. Kundal. Mas para isso, terá de voltar a Londres.

De regresso à Terra do Nunca, o que traz consigo ditará o seu destino e o da Ilha… um destino sombrio!

Com este terceiro volume, Loisel leva-nos ao coração da aventura de Peter Pan tal como ele a interpretou. De facto, Tempestade é o álbum charneira, o ponto de união do todo, o momento fulcral em que Peter decide tornar-se Peter Pan.

Mas é também o álbum onde Loisel desenvolve várias ambiguidades que nos revelam que a Ilha talvez não seja tão feérica como parece.

Desde logo a primeira a destacar-se é que a violência não poupa ninguém naquela ilha imaginária. Os perigos são tão presentes e grandes (ou ainda maiores) como são no mundo dos homens.

A segunda é que Peter joga um jogo cujas regras são impiedosas. Não há lugar para os fracos na Ilha. A morte desempenha o seu papel e não tem contemplações para com os mais frágeis.

A terceira é a da estranha relação que Peter mantém com o mundo dos homens. Ele não consegue evitar o regresso a Londres para visitar os seus amigos, esquecendo por momentos a grave e urgente razão que o fez voltar.

E, por fim, o estranho paralelo relacional da sua mãe com um homem que parece ser um assassino e de quem os actos se sobrepõem à razão. Um homem cheio de impulsos mortíferos e incontroláveis, que irão servir a Peter e livrá-lo do fardo que há muito carrega. O fim traumático de um elemento do passado de Peter é deixado em suspenso de forma perfeitamente ambígua e é retratado, literalmente, à porta fechada, enquanto Peter regressa ao mundo real para ir buscar uma mala de médico que poderá salvar um amigo do mundo imaginário.

Neste último ponto, Loisel é brilhante na maneira como imagina e desenha a cena. E se, para quem não leu ainda os 6 volumes, é isto que vê…

… Para quem já leu todos, talvez seja isto que consiga ver!

Parece a mesma coisa e na realidade até é! Mas a ordenação que o nosso cérebro faz das ideias transmitidas é completamente diferente num caso e no outro.

Talvez um dos maiores segredos desta história em seis volumes se encontre nesta prancha. Mas para o descobrir é inevitável a leitura dos três volumes restantes.

Mas que fim! Embrenhados na leitura, damo-nos conta que o álbum já terminou… Tão rápido!

Este é um conto de fadas pleno de trevas, notavelmente escrito e desenhado por Loisel.

E se no nosso espírito ainda prevalece o espírito de Peter Pan de Walt Disney, não nos esqueçamos que quem o inventou foi J. M. Barrie, que tem como linha final do seu romance a seguinte frase sinistra: “… E assim continuará, enquanto as crianças forem alegres e inocentes e sem coração.”

Loisel tira o subtexto de Barrie das sombras e oferece-nos um Peter Pan das trevas!

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