
Alea jacta est! Análise de Peter Pan vol. 4: Mãos Vermelhas.
No jogo da vida, as peças estão finalmente todas posicionadas!
Frente ao Rubicão, Júlio César exclamaria alea jacta est (para aqueles que, como eu, são menos versados em latim, a expressão significa “o dado está lançado”). Perante o surgimento de uma primeira pista num novo caso, Sherlock Holmes, entusiasmado, diria the game is afoot. Mas estando nós em local de predominância da língua portuguesa e do nosso reconhecido fatalismo, a expressão mais apropriada parece-me ser “já não há nada a fazer!”
Se em Tempestade (o terceiro e anterior álbum da série – ver artigo Peter Pan: Um Conto de Fadas Sombrio!), a acção chega a um ponto de mudança crucial, em Mãos Vermelhas chegamos ao momento em que o Peter Pan de Loisel se funde com o Peter Pan da história original de J. M. Barrie. As diferenças entre ambos parecem gritantes, mas o que Barrie insinua, Loisel põe a nu.
Preparem-se então para reconhecer os personagens originais e os momentos que os definiram para várias gerações de leitores e de espectadores.
Mas não se esqueçam que quem está ao leme da narrativa é Loisel. Podem esperar, por isso, por aquele que talvez seja o mais sombrio álbum da série…

Vamos à história!
Peter termina a intervenção cirúrgica a Pan e consegue extrair-lhe a bala que fora disparada pelo Capitão em plena confusão gerada pela tempestade. Peter está nos limites. A operação foi difícil. As suas mãos estão cobertas com o sangue de Pan. A exaustão toma conta dele e cai inanimado no solo verdejante da terra imaginária, envolto pelo manto de Morfeu.

O povo feérico deixa Peter a descansar e voltam a atenção para Pan, a convalescer na casa de Mérilin. À sua cabeceira, todos esperam por um despertar esperançoso. Mas algo parece estar errado. Pan, de olhar esgazeado, transpira, bate os dentes e parece alucinar. A infecção alastra-se.
Peter acorda após um longo sono. Mérilin e Pholus dão-lhe a notícia que Pan não sobreviveu à intervenção cirúrgica. Como recordação, Pholus oferece a Peter a flauta que pertencera a Pan. Este foge e isola-se, recusando acreditar no que acaba de acontecer.
A noite cobre a Ilha. Sozinho, Peter crava num tronco o seu nome e o de Pan. Inadvertidamente, corta a ponta do dedo e o seu sangue mistura-se com o sangue seco de Pan que ainda está nas suas mãos. Peter percebe que o sangue de um e de outro não são mais que um só – os amigos ligados pelo sangue.
Entretanto, Sininho acaba por encontrar Peter e permanece fielmente a seu lado. Na água do rio, ele lava finalmente as suas mãos. E é nesse momento que se apercebe ter esquecido uma das recomendações cruciais do Sr. Kundal em relação à intervenção cirúrgica – ele não lavou as mãos antes da operação a Pan! Foi Peter que o infectou mortalmente com os seus germes. Louco de raiva, ele cai num profundo delírio ao mesmo tempo que o seu dedo cortado se infecta.
Psicologicamente perturbado, Peter acaba por vencer (será que venceu?) os desequilíbrios químicos que lhe assolam o cérebro. Lúcido (será que está?), ele conclui que só há um culpado para toda aquela desgraça – o Capitão – e começa a preparar uma vingança implacável e sem contemplações.
De regresso a Londres, ele cumpre a promessa de ir ao reencontro dos seus amigos do orfanato. O objectivo é simples: recrutá-los como seus soldados do país imaginário. Sem hesitações, todos o acompanham – Narigudo, Porcalhote, Meia-Leca, Criqui e até Rose.
Para trás deixam as ruelas sujas da cidade por onde deambula uma figura misteriosa cuja alma se confunde com o próprio negrume da noite, um certo Jack, que parece alcançar a paz de que necessita nos actos de degolar e esventar pobres mulheres de má fama. A primeira dava pelo nome de Mary Ann Nichols e corria a madrugada de 31 de agosto de 1888.

Neste quarto volume, como já se disse, Loisel funde de forma eficaz o seu Peter Pan com os elementos mais conhecidos que caracterizam o Peter Pan original de J. M. Barrie. Ou melhor, reúne os pontos-chave do que vai constituir a história conhecida de Peter Pan e do Capitão Gancho.
De facto, ficamos a conhecer a transformação dolorosa de Peter em Peter Pan e qual a razão de ele tocar a syrenx (a flauta do seu amigo Pan). Qual a razão de ele estar sempre a enfrentar os piratas e de não dar descanso ao Capitão. Qual a razão do Capitão passar a usar um gancho como substituto da mão perdida. Qual a razão de ter perdido a mão. Qual a razão do crocodilo se fixar nele como sendo a melhor iguaria do mundo. Qual a razão das outras crianças chegarem à Ilha.

A razão… A razão… A razão! Toda a história de Peter Pan narrada por Loisel é uma história das origens, mas este quarto álbum é particularmente esclarecedor nesse aspecto. Agora, de razão enquanto elemento do racional, tem muito pouco. As motivações principais do herói passam-se quase sempre num mundo ilusório (seja o real ou o imaginário), no qual se entretém a efabular todos os pequenos e grandes acontecimentos do quotidiano, entrando variadas vezes num delírio que mais se assemelha ao estado em que fica quem se afunda na droga ou no álcool.
E depois ainda há a chegada do personagem de Jack, que aqui é trazido originalmente por Loisel para o universo de Peter Pan. Mas será Jack um personagem real com identidade própria? Ou o reflexo sombrio da alma de alguém que julgamos conhecer? Será razão ou ilusão?
A construção da narrativa é notável! Loisel passa de um acontecimento ao outro através de sequências muito rápidas que ligam na perfeição a acção à leitura. Passamos de uma situação perturbadora e dramática para o herói, a uma situação em que confronta com firmeza o seu destino de se tornar Peter Pan. De uma situação de raiva extrema em que coloca numa só pessoa a origem de todos os males que assolam a sua vida, para uma situação em que exerce a sua vingança de forma perfeitamente planeada e com a máxima satisfação.
Na maior parte (se não em todas) das outras versões de Peter Pan, nomeadamente na de Walt Disney, os aspectos sanguinolentos, cruéis e sádicos estão sempre disfarçados pelo manto diáfano da omissão, do subentendido ou mesmo do humor.

Mas aqui, com Loisel, tudo é feito às claras, exposto e explicado. É certo que Peter Pan é um personagem feérico, mas utiliza o mal para fazer o bem. E certos personagens não são tão gentis quanto aparentam ser. Se há que haver sangue, há sangue! Se há que haver dor, há dor! Em definitivo, não é um conto cor-de-rosa o que nos conta Loisel!

O desenho fluído e dinâmico de Loisel é notável. Os rostos expressivos numa estranha fronteira entre o real e o grotesco; os conhecidos personagens feéricos que, através do seu traço, ganham uma nova e criativa identidade visual; as personagens femininas que conseguem o ponto de equilíbrio entre a elegância e a opulência; as sequências rápidas de acção nas quais os movimentos aparentemente anárquicos criam perfeitos bailados narrativos, tudo concorre para que a história se nos apresente de maneira admirável e viciante. Será mesmo que tudo tem de acabar no sexto volume?
Ah! E não nos podemos esquecer de Sininho. Pois, se parece que o seu papel na trama é de actriz secundária, nos próximos volumes ela definirá a própria essência da Terra do Nunca. Entre a luz e a sombra… entre a razão e a ilusão. Os dados estão lançados!


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.