Análise de Alix Senator vol. 1: As Águias de Sangue.
Em 1948, o escritor e desenhador Jacques Martin criou para a revista Tintin um dos grandes heróis da Banda Desenhada europeia, Alix, o jovem gaulês romanizado que cai nas boas graças de Júlio César e que, com Enak, o seu amigo egípcio, vive as maiores aventuras ao serviço da república romana.
Desde então e até 2010 (ano da sua morte), Jacques Martin invadiu milhões de lares em todo o mundo com os seus álbuns (ver artigos acerca de Alix) e foi preparando equipas de desenhadores e argumentistas para lhe sucederem e fazerem com que o seu herói lhe sobrevivesse. E conseguiu!
Em 2012, a Casterman resolve fazer uma aposta arriscada – envelhecer o herói e tentar apresentá-lo a uma nova geração de leitores. E embora não seja muito usual vermos heróis envelhecerem no universo da 9.ª Arte, o facto é que tal não é inédito. Na Europa, por exemplo, temos Buddy Longway, de Derib ou Thorgal, de Van Hamme e Rosinski e, nos Estados Unidos, o famoso Príncipe Valente. Mas o que qualquer um destes tem em comum é que acompanhamos o seu processo de envelhecimento. Já com Alix, dá-se um salto temporal de cerca de 30 anos; os cabelos louros estão agora brancos; de serviçal, ainda que privilegiado, passa a membro do Senado; e o seu amigo Enak morreu. Pelo meio, muita água correu pelo Rubicão e não foram poucas as tragédias que ensombraram a vida de Alix e que estamos prestes a descobrir.
Mas a Casterman resolve redobrar o risco e escolhe para desenhador Thierry Démarez que, com um estilo realista, se afasta por completo daquele praticado por Jacques Martin e por todos os seus sucessores, inscrevendo-se estes na escola franco-belga da “linha clara” de que também fazem parte heróis como Tintin ou Blake e Mortimer.
Ou seja, um herói envelhecido trinta anos e um desenhador com um estilo completamente oposto ao que os fãs de Alix se habituaram ao longo de 64 anos (em 2012) ou 73 anos (em 2021). Será que a aposta foi ganha?
Este mês, a Gradiva publicou entre nós o primeiro volume da série, As Águias de Sangue, podendo imagens de 11 das suas páginas ser apreciadas aqui.
Vamos à história!
Roma, ano 12 a. C.. Alix tem 54 anos e o cabelo de um branco imaculado. Ascendeu ao cargo de senador romano, tem um filho de nome Tito e apadrinhou Khephren, filho de Enak, o melhor amigo de Alix há muito desaparecido.
O destino do Império é ditado pelo todo poderoso César Augusto, primeiro imperador de Roma, filho adoptivo e herdeiro de Júlio César e que, em tempos, respondia pelo nome de Octávio.
Augusto tem o poder absoluto, inclusive o de Pontífice Máximo, e só assim consegue evitar que a “Cidade Eterna” mergulhe no caos após décadas de lutas viscerais e fratricidas. Uma paz duradoira parece agora reinar sobre o Império, mas é uma calmaria que prenuncia tempestade.
Perto do Monte Circeu, no Lácio, Marco Emílio Lépido – fiel amigo de Júlio César, membro do Segundo Triunvirato após o assassinato daquele e agora caído em desgraça e rival de César Augusto – vai ao encontro de um destinatário misterioso na calada da noite quando é apanhado por uma violenta tempestade. O seu cavalo assusta-se com os trovões e Lépido é projectado pelo ar. Caído por terra, é atacado por uma besta assassina. Na manhã seguinte, é encontrado com as tripas de fora e meio comido por suínos.
Poucos dias após a eleição do Imperador Augusto como supremo sacerdote de Júpiter, o general Agripa, seu genro e designado sucessor, é esventrado por uma gigantesca águia com garras de ouro, sob os olhares horrorizados de Tito e Kephren.
Tudo aponta para que Augusto seja o culpado das duas mortes. E antes que Roma tome conhecimento destes acontecimentos, o Imperador encarrega o seu velho amigo e senador, Alix Graco, de proceder a uma discreta investigação e de encontrar o autor ou autores de tão abomináveis crimes.
Acompanhado pelos seus filhos, Alix parte para o mercado de Roma, esperando encontrar nas imediações do Fórum Boário pistas que o levem ao encontro do enigmático mestre dos pássaros, o adestrador de aves de rapina.
Mas o perigo persiste em rondar o próprio Imperador, aproximando-se cada vez mais. E Alix acabará por descobrir que a mais perigosa das aves de rapina se esconde no coração de Roma, onde ninguém poderia supor…
A editora Casterman encontrou em Valérie Mangin e em Thierry Démarez a argumentista e o desenhador que tentariam renovar o conceito “Alix” para uma nova geração de leitores, mas também aumentar o nível de exigência do ponto de vista do argumento e do grafismo. Ela é uma latinista, historiadora e historiadora de arte e ele foi cenógrafo da Comédie Française e já desenhou vários álbuns de BD.
Em relação à narrativa, Valérie Mangin tem o bom senso de não tentar sequer imitar o estilo de Jacques Martin, embora seja uma apaixonada do “Alix original”. Ao contrário das caixas e balões com longos textos que caracterizavam e caracterizam ainda hoje a série original, agora temos diálogos curtos e mais possantes. A intriga é menos complicada e mais directa, mas nem por isso menos exigente e detalhada historicamente.
E o que não é imediatamente perceptível para o leitor, não significa que não esteja lá. Um bom exemplo é o novo estatuto de Alix. No tempo de Augusto, para se aceder à função de senador era condição sine qua non ter-se um milhão de sestércios. Ora, Alix não possuía tal fortuna e o cargo deve-o, por isso, ao seu amigo imperador. Conclui-se assim que Alix perdeu parte da sua independência a favor da sua ascensão social. Felizmente, mesmo que aburguesado e amigo dos mais altos dignitários romanos, não se limita a sentar-se no senado ou a passear-se pelas ruas de Roma recostado indolentemente na sua liteira e parte, invariavelmente, em viagem e à aventura.
A realidade e a precisão histórica estão assim presentes ao longo de todo o álbum sem, no entanto, nunca se fazer sentir o seu peso. Mas não há aqui lugar a imprecisões.
É brilhante a maneira como Mangin coloca Alix trinta anos mais velho e ao lado de Augusto, agora imperador, mas, desde os tempos em que se chamava Octávio, amigo de Alix. Aliás, é curioso vermos a evolução das idades e do estilo nas duas imagens de Augusto que se seguem, bem como a sua estátua.
E o argumento torna-se muito mais credível com a ascensão de Alix como um dos notáveis do Império. Pois assim, nas suas investigações, ele tem acesso directo aos corredores do poder e a possibilidade de descortinar mais facilmente os mecanismos das mentalidades políticas do fim da República e começo do Império. Ao mesmo tempo, mercê do desenrolar da narrativa, percebemos ainda a influência da religião no quotidiano de Roma.
E é igualmente credível que Alix e Enak, trinta anos depois, tenham constituído uma família e gerado descendência (finalmente!). Não nos podemos esquecer que o Alix criado em 1948 tem apenas quinze anos e que Enak, que descobrimos em A Esfinge de Ouro, um pouco menos.
O argumento não nos poupa em detalhes, sejam eles históricos ou de ligação à série clássica. E a narrativa é pulsante, com as suas intrigas, golpes baixos, com a morte sempre a rondar, o suplício dos escravos crucificados, a força da religião, as superstições e as maldições, tudo a envolver com igual dinâmica figuras históricas e de ficção.
Mas o mito não é só reinventado por Mangin, mas também e com igual força por Thierry Démarez. Também o desenhador não tenta imitar o mestre Martin e afasta-se por completo do traço “linha clara”. Aliás, o seu traço realista e enquadramentos aproximam-se muito mais das séries de TV péplums como Roma ou Spartacus e da série Murena.
O desenho modernizado de Démarez está muito mais próximo do estilo de Delaby (Murena) do que de Jacques Martin. E brinda-nos com planos de conjunto sumptuosos, apoiados numa documentação credível. Os rostos são distintos, bem caracterizados e, muitas das vezes, eloquentes.
O seu traço é preciso e não se permite erros de perspectiva, tanto a nível das figuras como da arquitectura e das paisagens. E é igualmente detalhado ao nível das indumentárias, dos interiores e do mobiliário. Nada é tratado com displicência.
Na verdade, o trabalho de Démarez é mais uma ruptura na continuidade do que um corte total. As suas pranchas inteligentes e o sentido da precisão fazem a síntese perfeita entre duas escolas e duas épocas – a de Jacques Martin e da linha clara e a de Delaby e do realismo cinematográfico. E o que se disse não tira mérito nem originalidade ao trabalho de Démarez que também na exigência da reconstituição histórica acaba por formar um triunvirato com Martin e Delaby, como podemos ver nos exemplos que se seguem.
Por fim, quanto à paleta de cores de Démarez, ela é um verdadeiro regalo. As nuances de ocre são sublimes e acrescentam ao desenho a patine do tempo. No todo, são sempre delicadas e ajudam a recriar o ambiente e a cena com precisão. Através delas, consegue-se mesmo sentir o momento do dia em que se passa a acção, de onde ilumina o sol e de onde se projectam as sombras.
As Águias de Sangue é não só o primeiro álbum de uma série como o primeiro episódio do Primeiro Ciclo de Alix Senator, intitulado A Conspiração das Aves de Rapina.
O projecto é ambicioso, mas sabemos hoje que a aposta foi ganha. Valérie Mangin e Thierry Démarez já produziram 11 álbuns, sempre mantendo uma qualidade superior a todos os níveis. Bem que podem dizer, qual Júlio César no Senado, veni vidi vici – cheguei, vi e venci!
Quanto ao regresso envelhecido do nosso herói, só o posso saudar:
Ave Alix Senator
EXTRAS
Eis duas curiosidades. A primeira é que, com o êxito da série Alix Senator, a Casterman pediu à argumentista Valérie Mangin que, de algum modo, cruzasse esta série com a série clássica. Ora, como não se trata de uma série de ficção científica onde uma máquina do tempo poderia juntar o Alix adolescente com o Alix adulto (gerando um terrível paradoxo temporal), Mangin resolveu a questão de maneira simples – a próxima aventura a publicar no mercado francófono inicia-se em Alix, sendo publicada em 2021 no 40.º álbum, e termina em 2022 no 13.º álbum de Alix Senator. Um intervalo real de um ano e um intervalo ficcional de 50 anos para o desenrolar de uma aventura.
Deixo aqui as primeiras vinhetas desenhadas pelo novo desenhador da série Alix, Chrys Millien. O título do álbum é L’oeil du Minotaure (O Olho do Minotauro, numa tradução literal).
Por fim, como segunda curiosidade, refira-se que o sacerdote cego desta primeira aventura de Alix Senator, As Águias de Sangue, é baseado no personagem Jorge de Burgos, o bibliotecário-mor criado por Umberto Eco para o seu romance O Nome da Rosa, como homenagem ao escritor argentino Jorge Luís Borges.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.
Mais uma extraordinária recensão crítica; tão urgente a sua consulta quão urgente é o nosso encontro com esta fabulosa sequela de Alix.
Obrigado pela gentileza, caro Rui.
Na verdade, muito mais havia para dizer acerca deste primeiro volume de Alix Senator (por alguma razão, faz parte do “PNL” francês). por exemplo, só em termos de reconstituição histórica dos lugares, o leitor precisa de tirar um dia para tentar descobrir todos – como a Porta Capena que dava acesso à Via Apia (a principal estrada que ia dar a Roma) ou o Circo Máximo, as Termas de Agripa, o Panteão, a Colina do Capitólio, o Monte Palatino, o Mausoléu de Augusto, as Casas de Augusto, isto para citar apenas alguns dos que descobri.
Os milhares de apreciadores portugueses de Alix têm nesta série um rejuvenescer inteligente da história do herói gaulês. Curiosamente, é um rejuvenescimento que se deve ao envelhecimento.
Abraço