Nada é assim tão simples!

Nada é assim tão simples!

Análise de O Mercenário, vol. 1: O Fogo Sagrado.

Ninguém conhece o seu nome ou o seu passado. Dele só se sabe que é um soldado da fortuna a soldo de quem lhe retribuir os seus méritos – um mercenário.

Num país envolto em nuvens eternas, isolado do resto do mundo e com uma cultura muito própria, o Mercenário viaja de cidades altaneiras ou flutuantes para picos solitários e extensas mesetas, montado em dragões e em busca das mais fantásticas aventuras nas quais nunca podem faltar as mais belas mulheres desnudadas.

Ambientada no género Alta Fantasia, e situada em plena Idade Média, por volta do ano 1000, a série foi criada pelo espanhol Vicente Segrelles em 1980 para a revista Cimoc e publicada pela primeira vez em álbum pela Norma Editorial em 1983. O seu enorme sucesso deve-se, em parte, à originalidade do autor ao pintar a óleo cada vinheta, o que, na altura, muito antes do norte-americano Alex Ross e dos que se lhe seguiram, era uma absoluta novidade.

A nova edição nacional (cf. sinopse e previews aqui), levada ao prelo pela Ala dos Livros, tem o interesse adicional de nos brindar com 16 páginas adicionais nas quais o próprio autor, em discurso directo, nos vai contando a génese de O Mercenário e alguns pormenores acerca da série, tudo muito ilustrado.

Vamos à história!

Na Terra das Nuvens Permanentes, o Mercenário desliza pelos ares montado no seu dragão. A armadura fria e desconfortável assenta-lhe directamente na pele, sem tecidos ou cota de malha. Os seus olhos semicerrados perscrutam o horizonte. Ao longe, vislumbra uma fortaleza inexpugnável. À medida que se aproxima, distingue a silhueta de uma mulher nua, pendurada numa trave que a projecta sobre um infindável precipício. O objectivo da sua missão: salvá-la e entregá-la ao marido.

O salvamento da refém é realizado com sucesso, mas não sem dificuldades. Os raptores perseguem salvador e resgatada numa feroz batalha aérea; o dragão do Mercenário é ferido de morte e acaba por se despenhar; homem e mulher escondem-se numa gruta onde acabam por passar a noite; ela tenta seduzi-lo, mas ele resiste à tentação e põe a missão de a entregar ao marido em primeiro lugar. Antes disso, o Mercenário ainda vai enfrentar um dos muitos monstros que habitam aquelas terras nubladas.

Entregue ao marido a contragosto e sentindo-se despeitada pelo Mercenário, a mulher exerce a sua vingança acusando-o de a ter violado. Louco de raiva, o marido manda os guardas prenderem o nosso herói com o fito de ele próprio o matar. Mas o Mercenário consegue fugir, usando o único meio de fuga que tem à mão: um planador. E assim mergulha nas nuvens eternas para a morte certa, julga ele, pois é sabido por todos que abaixo das nuvens não há nada para além da danação.

E é neste momento que começa a saga do Mercenário, no momento em que ele descobre que há outro mundo abaixo das nuvens e que nele também existem muitas mulheres nuas a precisarem de ser salvas…

Antes de entrar na Banda Desenhada como autor, Vicente Segrelles já participava no mundo editorial criando capas fantásticas sobretudo para publicações de Ficção Científica e de Fantasia, para além de ilustrar livros sobre armas e manuais técnicos.

Quando propõe ao seu agente criar uma história de Banda Desenhada, onde coloca em prática as suas excelentes técnicas de pintura a óleo, estava longe de adivinhar o sucesso que ia alcançar.

Mas, desde o início, Segrelles afirmou que a sua maneira de ver a Banda Desenhada se pauta pela simplicidade: simplicidade da história, simplicidade da narrativa, simplicidade da trama. Para ele, há que privilegiar o desenho e, aí sim, o detalhe e a complexidade. Não há que carregar caixas e balões com textos densos. A leitura, tanto ao nível do texto como do desenho, deve ser fluída e agradável.

Ora, tendo em conta esta declaração de intenções, é isso mesmo que Segrelles consegue com este primeiro volume de O Mercenário. Uma história simples, um texto simples e um verdadeiro festival visual que, só por si, sustenta todo o conjunto.

No entanto, nada é assim tão simples. Temos de ter em consideração que este é o álbum que lança a série de 14 volumes e que nele não se revela tudo, longe disso. Dos dois mundos criados por Segrelles – o acima das nuvens, que é o do Mercenário, e o abaixo delas, o do mosteiro que o irá contratar – temos apenas vagos vislumbres dos sítios, dos povos, da cultura, da fauna.

A nível de género, também não há simplicidade. Na verdade, Segrelles mistura com eficácia e habilidade a Alta Fantasia com a Ficção Científica (como se poderá ver, sobretudo, a partir do volume 8). Para além disso, e logo neste primeiro volume, é claro que laivos de orientalismo…

…e da sub-cultura Steampunk marcarão presença ao longo de toda a obra.

Portanto, volta a dizer-se, que nada é assim tão simples na obra de Segrelles. Desde a criação de dois mundos que avançam num desenvolvimento autónomo e paralelo aos das civilizações existentes por volta do ano 1000 da nossa Era, à mistura de géneros que vão da Fantasia com traços das “Mil e Uma Noites” ao estilo Steampunk, passando por temas clássicos das lendas e mitos gregos até à Ficção Científica (envolvendo a Atlântida, Incas e extraterrestres), muito serve ao autor para criar esta manta de retalhos que, nem por isso, perde credibilidade.

Aliás, as aventuras do Mercenário tornam-se únicas também por essa razão: o leitor está sempre à espera de qual será o próximo mito sobre o qual se centrará o álbum seguinte.

E a “embrulhar” tudo isto, há a arte de Segrelles. Pintor talentoso, o seu trabalho é muito próximo do hiper-realismo ou foto-realismo, mesmo quando representa seres fantásticos como dragões e répteis monstruosos.

O mesmo se passa com os detalhes de engenhos, mecanismos, cordames, armas e armaduras.

Mas, sobretudo, o hiper-realismo e a sua pintura elegante estão bem presentes naquela característica que acompanha toda a série do Mercenário e que, independentemente de considerações sexistas, encanta tanto leitores como leitoras: a representação da mulher e do corpo feminino no seu apogeu, seja através das constantes damas em perigo, seja através de uma guerreira de grande importância nos álbuns que se seguem.

Mas é impossível não mencionar também a beleza dos seus dragões voadores, as paisagens grandiosas, tantas vezes a perder de vista ou a enorme galeria de personagens, cada uma com características únicas.

E, por fim, a acção constante, raramente ausente por mais de uma ou duas páginas, marca igualmente este álbum de abertura de O Mercenário.

Curiosamente, a pintura de Segrelles dá-nos uma certa impressão de imobilismo. Cada vinheta é, de facto, um quadro, e pode ser apreciada por si só. E o leitor vê-se, tantas vezes, no papel de mero espectador a assistir maravilhado a toda uma exposição de quadros magníficos que, por acaso, também contam uma história sequencial.

Portanto, caro leitor, permita-se o prazer de descobrir este universo original e de se deliciar com vinhetas e pranchas de grande beleza estética, hiper-realista e, de certa forma, clássica.

E, independentemente do que o próprio autor diga, não se esqueça de que nada é assim tão simples!

EXTRA

Como acima se disse, a obra de Segrelles é reconhecida pela predominância de certos elementos quer ao longo da narrativa da série O Mercenário, quer nos seus quadros.

Deixo-vos aqui alguns exemplos e lanço-vos o desafio: qual o elemento mais preponderante nas obras de Segrelles?

Armas, armaduras, gigantes e… mulheres.

Monstros, terror e… mulheres.

Guerreiros, répteis gigantescos e, é verdade… mulheres!

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