Análise de O Mercenário, volume 10: Gigantes.
Desde tempos imemoriais, o fogo tem o estranho condão de enfeitiçar os Homens. À volta de uma fogueira, hipnotizados pelo bruxulear das labaredas, parece que todas as confissões são possíveis e todas as histórias, por mais improváveis, tornam-se credíveis.
Pois, é precisamente à volta de uma fogueira que vamos encontrar o homem sem nome, o misterioso Mercenário, neste novo volume que a Ala dos Livros acaba de publicar com o título Gigantes (cf. apresentação e previews da edição nacional aqui), inédito em Portugal e o décimo da série.
Para aqueles não familiarizados com o personagem, aconselho a leitura do artigo “Nada é assim tão simples!”, no qual se faz a análise do personagem e do primeiro álbum da série.
Vicente Segrelles resolve comemorar a chegada ao décimo volume da série com um álbum atípico em relação ao que nos habituou. Nele, ao invés de termos uma aventura, temos quatro. Quatro histórias curtas contadas pelo protagonista à volta de uma fogueira. Quatro fins surpreendentes. Quatro gigantes (ou mais) de pesadelo. Quatro razões para nos deliciarmos, uma vez mais, com a arte a óleo de Segrelles.
Vamos às histórias!
À beira de um lago, no abrigo de uma formação rochosa ancestral, o Mercenário e Nan-Tay (sua companheira em várias aventuras) descansam à volta da fogueira. Perto deles, as suas montadas aladas parecem velar pela sua segurança.
Absorta pela dança mágica das chamas, Nan-Tay relembra com nostalgia as histórias fantásticas que o seu avô costumava contar-lhe, sobretudo as histórias de gigantes.
O Mercenário oferece-se então para a entreter com o relato de algumas das suas fantásticas aventuras que envolveram o confronto com seres colossais.
Na primeira, ele conta como entrou numa fortaleza inexpugnável e enfrentou um guerreiro gigante e o seu dragão de modo a salvar uma donzela cativa.
Na segunda aventura, o Mercenário relata como confrontou um génio que há muitos séculos estava preso numa garrafa de vidro, bem ao estilo do génio da lâmpada solto por Aladino no conto das Mil e Uma Noites.
Na terceira, o desafio é triplo, já que o Mercenário tem de lutar com um gigante alado, com um rei Artur zombie e com um Lancelot gigantesco. Tudo isto para salvar uma pobre donzela prestes a ter a sua energia vital consumida por uma velha que já viu melhores dias.
Mas a aventura não termina aqui, pois o nosso herói, num estado letárgico entre a vida e a morte, ainda vai ter uma espécie de descida aos infernos onde terá de enfrentar um Mefistófeles colossal.
Por fim, na quarta história, o Mercenário conta a Nan-Tay como enfrentou um dragão anfíbio de modo a salvar uma amazona e como depois foi parar a um reino governado por uma estranha rainha gigante.
As histórias terminam. O fogo ainda arde. Nan-Tay, incrédula com tão extraordinários relatos, resolve ir dormir. É a vez do Mercenário ficar de vigia. Do outro lado do pequeno lago, um cavaleiro de armadura espia-os discretamente. Talvez seja o começo de uma nova aventura…
Como facilmente podemos concluir, o elo comum entre as quatro histórias que integram este 10.º álbum de O Mercenário é a existência de gigantes em todas elas. Gigantes alados, gigantes demoníacos, gigantes obesos, gigantes reconhecíveis. Gigantes que, de algum modo, vão perturbar o correr pacífico das aventuras do nosso soldado da fortuna.
Mas não é só este o elemento comum a todas as quatro histórias. Desde logo, em termos narrativos, todas elas têm um certo humor adjacente e finais inesperados que conseguem mesmo surpreender.
Depois temos aquilo que Segrelles faz em vários dos seus álbuns: brincar com lendas ou certos elementos lendários. É assim na primeira aventura com um piscar de olho à história da Bela e do Monstro; na segunda aventura, com uma espécie de prequela ao génio da lâmpada do conto de Aladino; na terceira com elementos do Ciclo Arturiano, com a participação do Rei Artur e de Lancelote; e na quarta aventura com a participação da tribo das Amazonas, ainda que com outro nome.
Mais dois elementos são comuns às quatro histórias, como são também comuns a toda a série. O primeiro é o orientalismo e o segundo são as belas mulheres.
Quanto ao orientalismo, ele está bem patente em muitos elementos arquitectónicos, na decoração dos interiores, nas indumentárias e adereços e até em alguns dos personagens, como é o caso do génio.
Quanto às mulheres, e como é hábito, na sua maioria são donzelas em perigo a precisarem de ser salvas. Mas também temos mulheres decididas e fortes e, caso menos comum na obra de Segrelles, mulheres vilãs – sendo que estas últimas devem pouco à beleza.
Segrelles dá largas à sua criatividade artística pintando tudo aquilo que lhe apetece pintar, desde que se justifique pela narrativa. Temos assim uma elaborada prisão onde se encontra encarcerado o génio, um ovni que ascende aos céus num discreto segundo plano, armaduras sempre criativas e uma panóplia de estranhos seres.
Também a tecnologia e elementos mais técnicos estão presentes nesta grande aventura que se multiplica por quatro. Desde armas complexas e suas engrenagens, a pontes levadiças e outras geringonças (não nos podemos esquecer que Segrelles também trabalhou na ilustração de livros técnicos).
Nestas histórias, Segrelles deixa que predominem os elementos de Alta Fantasia que caracterizam os primeiros álbuns da série. Mas nem por isso esquece os elementos de Ficção Científica existentes em volumes mais próximos deste.
Como sempre, os desenhos (as pinturas) são sumptuosos, detalhados, imaginativos e belos, mesmo que se sinta aqui e ali uma certa falta de movimento. Como já se disse noutro artigo, cada vinheta é um quadro e cada prancha uma verdadeira exposição.
Para os apreciadores de Segrelles, este álbum tem ainda uma característica que o torna único. É nele, mais precisamente a partir da página 35, que o autor deixa de pintar a óleo e passa a fazê-lo utilizando o computador.
Tal como no primeiro álbum publicado pela Ala dos Livros, temos aqui mais um caderno com extras, onde mergulhamos nos bastidores de O Mercenário.
Por todas estas razões e mais umas quantas, imaginemos estar relaxados à volta de uma fogueira enquanto uma bela Sherazade nos conta as mais fantásticas histórias sem correr o risco de perder a cabeça.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.