
Análise da primeira obra publicada de Jodorowsky e Moebius.
De quando em quando, surgem aquelas obras raras que rapidamente se tornam icónicas. De quê? Não sei! Que se tornam obras de culto. Do quê? Também não sei!
Obras inovadoras, com mérito próprio, estética única, estranhas, de múltiplas leituras, que não se enquadram e que resistem, serenamente, ao correr dos tempos.
Criada em 1978 pela editora Les Humanoïdes Associés, a obra Os Olhos do Gato (cf. sinopse e previews da edição nacional aqui) assinala o começo de uma parceria genial entre o argumentista Alejandro Jodorowsky e o incontornável Moebius. Parceria que nos daria, dois anos depois, o começo da intrincada e extraordinária saga do Incal e do detective John Difool.
Curiosamente, Os Olhos do Gato surgiu como um brinde, uma jogada de marketing da editora que o oferecia na compra de determinado número de álbuns de Banda Desenhada.
O certo é que se tornou rapidamente numa das tais raras obras icónicas e de culto.
Vamos tentar descobrir porquê, agora que a Arte de Autor e A Seita a publicam, finalmente, no nosso País, numa cuidada edição que tem como extras um prefácio de Jodorowsky e um artigo de fecho com o cuidado e o interesse a que João Miguel Lameiras nos tem vindo a habituar.

Vamos à história!
Um rapaz (?) manda a sua águia caçar um gato e trazer-lhe os olhos deste, de modo a que os possa colocar nas suas órbitas oculares vazias e consiga passar a ver. Fim!
Parece-vos pouco? Simplista demais? Bem, aqui vai nova tentativa!
Vamos à história!
Num mundo pós-apocalíptico, do alto da sua torre, um ser humanoide de idade indefinida envia Meduz, a sua águia, numa caçada.
Uma densa camada de nuvens envolve este mundo. Talvez resultado de um Inverno nuclear. Mas, por vezes, um raio de sol consegue romper a barreira nebulosa. E é esse o momento mais propício para a caçada. É que os seres vivos são atraídos pela luz e pelo calor do sol.
O ser humanoide pressente-o, sente-lhe os passos e, telepaticamente, informa Meduz que é o momento de atacar.
Incauto, um gato preto aproveita o calor do raio de sol solitário. Meduz atravessa meia cidade em ruínas e mergulha sobre o felino, cravando-o com as suas garras.

O gato morre! Meduz, a pedido do seu mestre, arranca-lhe os olhos cuidadosamente.
O rapaz sente-a regressar. Meduz voa, imponente, acima da cidade. O rapaz espera-a, expectante. Meduz aproxima-se da torre com os olhos do gato nas garras. O rapaz recebe os olhos e experimenta-os…

Fica maravilhado. Por breves instantes, consegue ver. Consegue ver talvez até demais. Talvez com a visão do gato… talvez os seus derradeiros momentos de vida.
O rapaz fica horrorizado. E ordena a Meduz: “Da próxima vez, traz-me os olhos de uma criança.” Meduz volta a lançar-se sobre a cidade…

Mais de 40 anos após a sua publicação, esta obra de Jodorowsky e de Moebius continua a encantar e desconcertar.
As leituras são múltiplas e, por isso, quem pegue nela, a leia e a arrume logo na prateleira dificilmente sentirá a sua magia.
Uma espécie de poema sombrio, numa atmosfera de desolação, tem como paradoxo a espera da esperança, a esperança de uns olhos novos, de um novo olhar, de mais um raio de sol… só mais um!
Em termos deste artigo, é mais fácil contar a história do que a explicar. Aqui, explicar é estragar… Estragar a possibilidade de cada leitor voar com as asas de Meduz e observar, não com os olhos do gato, da águia ou do rapaz, mas com os seus próprios olhos o que se passa à sua volta.
E é isso que os autores conseguem… Fazer-nos planar ao longo das páginas amarelas em contemplação. Uma e outra vez, extasiados, sem saber bem o que dizer.

As palavras são de uma economia violenta. Nem uma a mais! Apenas as suficientes para a história poder avançar e o nosso cérebro lançar-se em interrogações.
A narrativa, misteriosa e profunda, é elevada à 5.ª essência pelos desenhos sublimes de Moebius que aqui opta por um estilo gráfico bem mais detalhado do que o seu habitual traço “Linha Clara”. E a impressão do desenho sobre papel amarelo canário pode desconcertar a princípio, mas parece-me mais que um mero golpe estético.
Na verdade, parece até uma piada dos autores. Pois, se estamos num mundo cinzento, onde se arrancam olhos a gatos e se exigem olhos de crianças, porque não alumiá-lo com a cor do sol?
Os Olhos do Gato merece que me cale, que pare de escrever e que vos incite à sua contemplação.

No entanto, antes de o fazer, e um pouco ao jeito da moral das Fábulas de La Fontaine, deixem-me dizer, sem prosápia, que difícil e magnífico é quando olhos diferentes, apartados por continentes e civilizações, conseguem ver o gato, a águia, o rapaz e a criança da mesma maneira. São esses “irmãos do coração” que devemos estimar; é com eles que devemos trocar de olhos apenas para constatar que temos a mesma visão. E depois, deixar fluir a alquimia… Como a que está tão presente entre Jodorowsky e Moebius.


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.