O Corvo V: O que é bom é para se ver…

O Corvo V: O que é bom é para se ver…

… E para se ler em Inimigos Íntimos.

Não há nada como uma boa história de origem!

Bruce Wayne tornou-se no Batman porque os pais foram assassinados à sua frente e um morcego lhe entrou pela janela. Kal-El tornou-se no Super-Homem depois de ser enviado pelos pais para a Terra mesmo antes de Krypton, o seu planeta, explodir. Peter Parker tornou-se no Homem-Aranha após ser mordido por um aracnídeo radioactivo. O Quarteto Fantástico foi banhado por uma tempestade de radiação cósmica. O Obélix caiu no caldeirão da poção mágica quando era criança.

Todos estes heróis (e tantos outros) têm um denominador comum: ficamos a saber a sua origem logo na primeira aventura.

E o Vicente?!? Como é que o Vicente se tornou em O Corvo®, esse grande herói lisboeta que não passa uma noite sem vigiar a Grande Alface à procura de meliantes?

Pois a origem de O Corvo® não é tão simples como a do Batman ou a do Super-Homem. E é impossível de ser contada logo na primeira aventura. Na verdade, foram necessários 27 anos e 5 grandes aventuras para ficarmos a saber da sua origem sórdida. Afinal, não é qualquer super-herói que tem no currículo de origem o ter sido violado por três miúdas esfaimadas.

Mas estou a adiantar-me! E antes de prosseguir, devo dizer que esta quinta aventura d’O Corvo (cf. apresentação e previews do álbum aqui), escrita, desenhada e colorida pelo imparável Luís Louro, acaba de ser publicada pela Ala dos Livros, numa cuidada edição com prefácio de João R. Marques, três páginas de FanArt, duas páginas de esboços e uma surpresa final, à laia de posfácio, e que irá deliciar todos os apreciadores de chamuças.

Vamos à história!

“Cai a noite na cidade…” A corja de ratos com asas, a que alguns também chamam de pombos, arrolham sonolentos nos beirais, largando dejectos corrosivos ao longo das fachadas pombalinas, de vários prémios Valmor e de outras tantas ora de estética Estado Novo ora pós-pós… pós-moderna.

E enquanto os cada vez menos habitantes da grande urbe dormem insensíveis à grande cagada ácida, um herói solitário (ou quase) vela pelos interesses inconscientes de todos os portugueses. Armado de um bastão ou melhor, de um taco ou melhor ainda, de um corvo-taco, Vicente, aliás O Corvo®, não dá descanso aos columbídeos.

Nesta luta eterna e inglória contra pombos e vilões mais ou menos super, tem sempre a seu lado a companheira de uma vida, a sua fiel Robim… Uma pasteleira que é a sua melhor ouvinte e conselheira.

Mas Vicente sofre de transtorno dissociativo de identidade… Que é o mesmo que dizer que tem dupla personalidade ou um alter ego.

Na verdade, Vicente sabe que o Corvo existe e partilha das suas memórias. Mas O Corvo® não tem a mínima ideia da existência de Vicente. E Vicente não aguenta mais o vazio que sente durante o dia (O Corvo® só actua à noite) e começa a consultar uma psicóloga.

E é com ela, através de várias sessões de hipnoterapia, que Vicente regressa à sua juventude traumática e descobre, por fim, a razão por que à noite se transforma no O Corvo®.

Mas a epifania não é o fim da aventura, pois o destino ainda lhe guardou umas quantas ironias…

Esta quinta incursão de Luís Louro na vida do Corvo é magnífica!

Se todos os tiques do protagonista e do seu alter ego são retomados na narrativa, e se voltamos a encontrar alguns personagens recorrentes das suas aventuras, é também verdade que Louro consegue reinventar o seu herói nesta história de origem.

A alternância de cenas entre Vicente e o Corvo permite-nos ver o apurado trabalho do autor na caracterização das duas personalidades. E tudo é enriquecido por um terceiro conjunto de cenas onde somos transportados até à infância de um Vicente inocente, tímido e medroso, constante alvo de chacota do seu grupo de “amigos”.

A nível estético dos ambientes, também os “três Vicentes” são bem distintos, alternando entre o gabinete da psicóloga — falsamente acolhedor —, as cenas do passado — na típica aldeia onde vivia com um avô resignado ao final da vida e uma avó azeda e autoritária — e os característicos bairros lisboetas — que Louro consegue desenhar com inteligência e até uma certa ternura.

O traço de Luís Louro parece cada vez mais apurado, não caindo na tentação de o estilizar demais, como acontece com alguns autores que privilegiam a velocidade criativa.

Aliás, a postura cuidada do autor perante a obra reflecte-se também na atenção dada aos inúmeros pormenores que irão deliciar os mais atentos. Deixo algumas dicas: leiam os muitos graffitis nas paredes de Lisboa; observem as capas das revistas de BD do Vicente; olhem para o quadro atrás da secretária da psicóloga, um teste de Rorschach ao melhor estilo de Andy Warhol, detenham-se na cabeça de porco em cima da cama do Vicente, bem ao estilo do filme “O Padrinho”. Estes e muitos outros são pormenores inteligentes carregados de humor que nos deliciam dentro da delícia maior que é a aventura em si.

E depois há o humor de Louro, maroto, brejeiro, inteligente e, tantas vezes, caústico, mordaz, mas sempre elegante. Neste sentido, uma das minhas cenas favoritas é a que se desenrola à volta de um busto de um certo Luís Louro — com o cocuruto cheio de fezes de pombo — e um grupo de jovens desvairados, extremistas do politicamente correcto, ansiosos por deixar marcado na estátua o seu manifesto antifascista, anti-homofóbico, antirracista e anti-anti. Um verdadeiro delírio em três páginas e dó-maior.

Como já tive oportunidade de escrever no artigo “Cientistas descobrem nova raça humana…!!!”, acerca do livro Os Covidiotas, Luís Louro devia ser agrilhoado ao estirador ou ao computador 365 dias sobre 365 dias e produzir por ano, pelo menos, dois álbuns.

Sendo um incondicional admirador do seu trabalho, reconheço que há autores da minha preferência que, por vezes, acabam por desiludir. Isso não me acontece com os álbuns de Luís Louro e não acontece com esta quinta aventura de O Corvo®.

Lamento apenas que determinadas livrarias, talvez menos avisadas sobre obras e autores, coloquem uma novidade destas em prateleira no próprio dia que chega à loja e apenas com 3 exemplares… Perdão, dois exemplares, pois um comprei-o eu! Se isto não é matar uma obra à nascença, não sei o que será. Depois não se podem queixar que as feiras do livro lhes tiram vendas.

É que sabem…? O que é bom é para se ver… e para se ler!

2 comentários em “O Corvo V: O que é bom é para se ver…

  1. Caro Corvo,

    Desde já um agradecimento pelo seu incansável trabalho a proteger-nos a todos nas noites sempre inseguras na Grande Alface.

    Um obrigado também por me ler. Mas creia que, em termos de leitura, sou eu o beneficiado.

    Aproveito para pedir desculpa se induzi os seus leitores em erro. Cada qual com o seu género e o do Robim é de macho. É um problema que tenho por vezes com as concordâncias… bicicleta… pasteleira… logo, menina. Mas não! Robim é um bicicleta.

    Abraço

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