Murena e as Mulheres no centro da trama

Murena e as Mulheres no centro da trama

Análise de Murena vol. 11: Lemúria.

Primeiro foi a Mãe, depois foi a Esposa e agora é a Morte, três personagens femininos que dão o nome a cada um dos ciclos (publicados até à data) deste magnífico fresco histórico que é a série Murena (ver artigos Murena: Primeiro Ciclo, Murena: Segundo Ciclo e Murena: Terceiro Ciclo).

Este peplum passado no tempo de Nero surgiu em 1997 da mente criativa de Jean Dufaux e da mestria artística de Philippe Delaby, que morre prematuramente em 2014, não sem concluir o nono volume da série.

O testemunho é passado a Theo Caneschi que, embora com um estilo bem diferente do de Delaby, consegue agradar às centenas de milhares de fãs da série com o volume O Banquete. Lemúria, a personificação da morte, é a sua segunda incursão no universo de Murena, editada no nosso país pela ASA.

Vamos à história!

Ano de 65.

Depois de ver Roma a arder, num gigantesco incêndio que ecoará nos anais da História, o imperador Nero tenta apaziguar os seus demónios e reencontrar uma paz que perdeu nos distantes tempos da juventude e da sua amizade pura por Lúcio Murena.

Murena faz-lhe falta. Murena falava-lhe honestamente e sem rodeios. E Nero pede a Tigelino, cada vez mais poderoso e ardiloso, que encontre o seu velho amigo.

Nos bairros mais miseráveis da cidade, povoados pela escória de Roma, Tigelino é levado pelo seu escravo corcunda a assistir a um combate de gladiadores fora do vulgar. Uma mulher seminua está prestes a defrontar dois gigantes musculados armados de espada e tridente. A sua maneira de lutar, ágil e veloz, surpreende Tigelino. E ainda mais quando ela vence facilmente os dois machos hercúleos. Tigelino tem de a comprar. Mas Hidra pertence a Insano, o Louco e nem ele nem ela estão dispostos a negociar com Tigelino. Aliás, Hidra é bem clara: só cede a sua liberdade ao imperador Nero.

Tigelino, não se dando por vencido, retira-se e é então informado pelo Corcunda do paradeiro de Murena. Embora o julgassem morto, ele foi recolhido por Lemúria, a irmã de Caio Calpúrnio Pisão, um respeitado e poderoso senador que, nas sombras, prepara com urgência o assassinato de Nero.

Lemúria mantém Lúcio Murena na sua casa de praia, drogado, sem memória, e num permanente ambiente de deboche apimentado por inúmeras orgias. Ela recusa-se a partilhá-lo com as suas amigas e parece até apaixonada.

Numa noite amena, contemplando a natureza, as deambulações de Murena acabam por levá-lo à vila de Tito Vespasiano, onde a sua protegida Antónia, amiga de Lemúria, acaba por o seduzir. A sua envolvência sexual com outra mulher e a conversa com Vespasiano parecem começar a quebrar o feitiço lançado por Lemúria, e Murena resolve voltar a Roma em busca de respostas.

Mas Lemúria é implacável, não se dá por vencida e está disposta a tudo para reaver Murena.

Já Murena, em busca da sua identidade, acaba por se cruzar com a gladiadora Hidra que, mais que tudo, deseja ser recebida pelo Imperador. Juntos procuram chegar a Nero…

Neste 11.º volume da série Murena, o argumento de Jean Dufaux volta a não desiludir e revela-o em grande forma. A narrativa, mais uma vez, é complexa e as histórias dos diferentes protagonistas vão-se cruzando de forma inesperada. Enquanto “todo” o Império anda em busca de Lúcio Murena, este regressa tranquilamente ao Palatino.

Dufaux joga inteligentemente com os ingredientes que enriquecem qualquer saga: amores (ou melhor, luxúria), ambição pelo poder e o seu exercício descontrolado, intriga política, traições (muitas!) e violência pintada de sangue. Em termos narrativos, o drama prossegue assim com grande eficácia.

Para além disso, o surgimento de um novo personagem intrigante vem trazer à história renovado fôlego. Ela é Hidra, a escrava gladiadora que parece ter importantes segredos a revelar a Nero e que fará de tudo para chegar até ao Imperador.

Apesar disso, e mesmo não sendo beliscada a qualidade narrativa, o presente volume traz poucas surpresas e parece mais a preparação para o próximo no qual culminará O Ciclo da Morte. É, nitidamente, o chamado álbum intermédio.

Os jogos sexuais, tão bem descritos ao longo da série, com apenas o suficiente de elegância necessária, continuam agora com um tom ligeiramente mais sórdido, mas nem por isso menos credível. E sabemos bem que, nesta época, a libertinagem era moeda corrente e de troca entre as classes privilegiadas. Lúcio cai nas garras de Lemúria, libertina rica e ociosa que conhecemos no final do volume anterior e que fez de Murena o seu brinquedo sexual através de uma droga que lhe tolda a memória e a vontade própria. E que ninguém lhe toque, se não quer sentir a ira sanguinolenta e sádica de Lemúria.

Apesar do sangue que corre, podemos adivinhar que esta é a calma antes da tempestade. É que, se Murena e Lemúria são personagens de ficção, já o irmão dela não o é. Caio Calpúrnio Pisão era um poderoso senador romano que não ficou para a História pelos melhores motivos. E assistimos aqui ao nascimento do complot que visa assassinar Nero e que ainda hoje conhecemos como a Conspiração de Pisão.

É precisamente neste aspecto que reside um dos grandes trunfos de Jean Dufaux – a capacidade de misturar com inteligência e talento ficção e não-ficção. Vemo-lo nas figuras históricas como Nero, Popeia, Tigelino, Séneca, Tito Vespasiano e Petrónio (para citar apenas alguns dos que aparecem ou são mencionados neste álbum), e na caracterização e percurso histórico de cada um.

Mas também o vemos nos acontecimentos — como é o caso da Conspiração de Pisão — ou na caracterização detalhada de usos e costumes. É disso bom exemplo o despudor de Lemúria na maneira como mostra o seu brinquedo sexual às amigas ou a descrição visual da orgia na vila de Tito Vespasiano. Ou ainda, na mesma orgia, na tentativa de matar uma escrava em falta lançando-a a um tanque cheio de moreias — é bem conhecido o episódio do novo rico Públio Védio Polião que atirava às lampreias os escravos que o desagradavam, acabando estes por serem devorados vivos e que, certa vez, foi impedido de o fazer pelo próprio Imperador César Augusto.

Em suma, para aqueles que, como eu, se interessam pela História, ler Murena e descobrir pequenos detalhes é um verdadeiro deleite.

Em termos gráficos, Theo Caneschi está agora mais longe da beleza realista e detalhada do traço de Delaby. E se no volume anterior (O Banquete) conseguiu surpreender com excelentes reconstituições de interiores e exteriores e encenações elaboradas, agora várias vinhetas parecem ser falhas em detalhe, os rostos são ainda mais angulosos e as cores de Lorenzo Pieri ora empastelam ora parecem esbater-se.

Em compensação, temos outras pranchas em que desenho, cor e iluminação se completam com harmonia e eficácia e ainda outras que são salvas pela encenação elaborada.

De qualquer modo, o trabalho de Theo é feito com profissionalismo e, sobretudo, com movimento que é visível mesmo nas vinhetas onde os grandes planos de rostos dramatizam a história.

O peplum de culto que é Murena decididamente não é uma série qualquer, quer pelo seu nível de excelência narrativa, quer pela forma (ainda que um pouco diminuída neste álbum), quer ainda pelas inúmeras referências históricas que, de tal modo estão casadas com a história que quase nem damos por elas, percepcionando-as como meros artifícios narrativos. E depois há que destacar o facto que as mulheres continuam a ser o motor do drama… Lemúria, Hidra, Popeia…

Sem dúvida, aguardo impaciente e expectante o próximo volume.

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