Sapiens Imperium, uma saga shakespeariana das estrelas!

Sapiens Imperium, uma saga shakespeariana das estrelas!

Análise a Sapiens Imperium.

O género Ficção Científica já conheceu melhores dias!

Os tempos de Arthur C. Clarke (2001 Odisseia no Espaço), de Isaac Asimov (Fundação; Eu, Robot), Robert A. Heinlein (Um Estranho Numa Terra Estranha), de Philip K. Dick (Blade Runner) ou de Frank Herbert (Dune), são tempos que já lá vão!

Agora, tanto na literatura como no cinema, e com excepção da saga da Guerra das Estrelas, os grandes sucessos e a criação continuada pendem todos para o género Alta Fantasia.

Contudo, no mundo da 9.ª Arte as coisas não se passam exactamente da mesma maneira. E tanto no mercado franco-belga, como no americano e no japonês, podemos continuar a usufruir de inúmeras obras de Ficção Científica de grande qualidade e inventividade.

É por isso de saudar a publicação em Portugal de Sapiens Imperium (cf. sinopse, previews e ficha técnica da edição portuguesa aqui), escrito pelo americano Sam Timel e desenhado pelo português Jorge Miguel.

Publicado originalmente no mercado francófono em 2021 pela Humanoïdes Associés, acaba de ser lançado em Portugal numa coedição entre a Arte de Autor e A Seita.

Ficção Científica no seu melhor…

Vamos à história!

No ano 5757, ao final de muitos séculos, de milhares de descobertas científicas cruciais e de guerras interplanetárias, a humanidade conquistou o universo. E, precisamente, uma franja da humanidade emergiu como dominadora.

O Império Sapiens, à frente do qual se encontra o Extra-Regente Amarcord Thesol e a sua família, controlam 530 milhares de milhões de seres inteligentes, repartidos por 123 espécies não-humanas, consideradas como escravos.

Os Thesol conquistaram o trono do Império esmagando os seus rivais, os Khelek, numa guerra dominada pela utilização dos Metalnautas, máquinas de combate nas quais os guerreiros humanos projectam a sua consciência.

Os poucos sobreviventes da dinastia vencida foram deportados para Tazma, uma lua desabitada do planeta imperial Shodu Prima.

Tazma é coberta de gelo e quase desprovida de ar respirável. As poucas dezenas de humanos sobrevivem escravizados no seio de uma rede de grutas subterrâneas cuja entrada é controlada por uma espécie de complexo militar.

Esta infraestrutura serve também de porto para os Metalnautas que vêm buscar a importante produção de algas, indispensáveis para a manutenção do Império. Mas as exigências imperiais são cada vez maiores e os objectivos delineados impossíveis de alcançar.

Estamos agora em 5822, sessenta e cinco anos padrão após a derrota da dinastia Khelek. O velho príncipe Baltar, descendente dos Khelek, lidera a comunidade que continua prisioneira em Tazma. Ele tem consciência que os objectivos impostos pelo Império estão a destruir lentamente os seus que, mais do que nunca, se sentem verdadeiros escravos.

Sopram os ventos da discórdia; a revolta avizinha-se e cabe a Baltar evitar a chacina da sua “família” que há décadas não vê a luz do dia.

Para isso, aconselha-se com o chefe Ba-Kom dos Lektars, espécie não-humana que também habita Tazma e que serve de intermediária entre os humanos e Malathon, um comandante cruel projectado num Metalnauta.

Mas a rebelião é inevitável e trará mudanças trágicas para todas as partes envolvidas, mudanças iniciadas pela jovem Xinthia dos Khelek…

Sam Timel oferece-nos em Sapiens Imperium um fresco de Ficção Científica ambicioso e original. A intriga geopolítica e marcial desenrola-se num futuro suficientemente longínquo para que as nossas percepções espácio-temporais e tecnológicas sejam completamente baralhadas e alteradas.

Numa conjuntura absolutamente shakespeariana, uma dinastia humana derrota e domina outra que acaba, logicamente, por se revoltar. Sob o plano da mecânica narrativa, é certo que é relativamente académica, mas o universo criado por Sam Timel é de grande coerência e tão vasto que a história consegue funcionar com grande frescura e despertando muito interesse. E se dúvidas houvesse, o caderno especial no fim do álbum faz-nos mergulhar na magnitude do empreendimento em que Sam Timel e Jorge Miguel se lançaram. Nele, somos apresentados à cronologia de mais de 3700 anos de evolução da Humanidade, dos primeiros embates com civilizações extraterrestres, da diáspora humana e guerras galácticas, de 2165 até 5822.

Na narrativa de Sam Timel existem todos os ingredientes de uma boa história de Ficção Científica: os bons aprisionados nas profundezas do solo; os maus que reinam sobre um império gigantesco; alienígenas apanhados em fogo cruzado; paisagens monumentais; poderes telepáticos (dos Lektars); tecnologia altamente avançada e excitante, à cabeça da qual estão os Metalnautas, robots que são avatares guerreiros dos humanos.

Mas se temos os mais interessantes ingredientes da Ficção Científica, temos também aqueles que caracterizam os melhores dramas shakespearianos: uma revolta preparada por duas gerações; uma bela jovem, herdeira da Humanidade, que se alia ao jovem herdeiro da família rival (fazendo lembrar um pouco Romeu e Julieta); a guerra entre duas dinastias; resistência e redenção; reviravoltas, combates e golpes palacianos.

Atrativo adicional: a progressão dramática, alternadamente clássica e inovadora, faz-se também com o envelhecimento dos heróis, estabilizando-se na fase de jovens adultos para os protagonistas. E são as mulheres as rainhas do jogo, no qual os golpes baixos, as vinganças e uma luta desesperada se posicionam de modo a não nos darem descanso até à última página.

E se Sam Timel nos dá uma narrativa mais que cativante, o que dizer então da qualidade artística de Jorge Miguel?!

Desde logo, há que apelidá-lo de Spielberg da 9.ª Arte ou de canivete suíço da BD, pois é tão eficaz no registo histórico/romântico (Shanghai Dream) como o é no de Ficção Científica.

O seu traço realista e rápido, nem por isso deixa de ser detalhado e cuidado, num estilo clássico e eficaz.

A composição das pranchas e os planos utilizados são hábeis e dinâmicos, imprimindo à narrativa uma maior emoção e conseguindo aumentar a envergadura da saga.

A construção estética dos personagens é muito cuidada, tal como o é o envelhecimento das mesmas. As expressões faciais e a linguagem corporal não nos fazem hesitar na leitura: sabemos o que os personagens estão a sentir e como se movem e não olhamos para um rosto apático que deveria transmitir emoção ou para um corpo numa posição impossível.

Por fim, a criatividade e a capacidade de invenção de Jorge Miguel parecem não ter limites. E isso é bem visível na criação dos cenários, das paisagens, do bestiário, das armas e das naves que nos transportam, com eficácia, para outros mundos.

E se, apesar das 112 páginas, terminamos a leitura a querermos ainda mais, vale-nos a linha de texto mesmo em baixo da derradeira vinheta: “Fim do primeiro ciclo.”

Com Sapiens Imperium, o leitor sente-se perante uma longa-metragem de Ficção Científica, cristalizada no coração das estrelas mais distantes que são o que resta do universo após o Big Bang.

Ficção Científica no seu melhor, com sabor a saga e a um drama shakespeariano, com continuação desejada!

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