
Análise da BD O Relatório de Brodeck.
Ah, que sensação aquela quando esperamos ansiosamente pela saída do novo livro do nosso herói favorito! Os nossos cinco sentidos parecem estar em alerta. Até o paladar… Parece que sentimos no ar o sabor da novidade na continuidade a chegar! Até a audição… Com o agradável restolhar das páginas.
Mas… E quando não há heróis?!
E quando não há nada com que nos identifiquemos de imediato? E quando, ainda para mais, se trata de uma adaptação à BD de um clássico (moderno) da literatura (algo que raramente me agrada)?
Então é um mergulho no escuro… Quase contrariado… Sem expectativas… À espera de nada. E foi precisamente assim que tomei contacto com O Relatório de Brodeck, uma adaptação à 9.ª Arte, feita por Manu Larcenet, do romance de Philippe Claudel.
E se a obra de Claudel já me tinha impressionado em 2007 quando foi publicada (vencendo o prestigiado prémio Goncourt des Lycéens), a obra de Manu Larcenet impressionou-me ainda mais!
Desde logo, devo dizer que a edição portuguesa é muito cuidada, como é hábito nas edições da Ala dos Livros (cf. previews, sinopse e ficha técnica da edição nacional aqui). O extenso álbum de mais de 300 páginas está encadernado em capa dura, impresso num papel com uma “boa mão”, tem fitilho e ainda uma slipcase da qual se reproduzem em seguida as duas faces, juntamente com a capa. E a tradução é exigente e muito cuidada.
Preparem-se, então, para vários murros no estômago.



Vamos à história!
O silêncio invernal estende-se por montes e vales, envolvendo também aquela pequena aldeia isolada perto da fronteira com a Alemanha.
Brodeck atravessa o bosque escuro em direcção ao albergue da aldeia. Vai buscar um pouco de manteiga. Mas aí chegado, envolto pelo calor sufocante de dezenas de corpos com um cheiro fétido de álcool e suor, ele é rodeado de imediato pelos ameaçadores homens da aldeia. Todos estão presentes. A única excepção é Anderer, aquele a que todos chamavam de “O Outro” desde que chegou à aldeia. Um homem diferente que observa os animais, que perscruta com intensidade os olhares e as almas. Que desenha coisas inúteis e que se comporta como ninguém antes dele se havia comportado.
Sem que uma palavra seja dita, Brodeck percebe instantaneamente o que aconteceu. O pacífico Anderer já não está entre eles. Os homens da aldeia tinham cometido o irreparável…

E agora pedem-lhe, de faca à cintura e de punhos cerrados, que Brodeck se encarregue de escrever o relatório acerca do que se passou. Logo a ele, uma espécie de proscrito da aldeia, cujo trabalho é escrever relatórios técnicos sobre a fauna e flora locais para a sua administração. Goste ou não, Brodeck terá de redigir o documento que deverá relatar os factos, inocentar os culpados e suavizar o inimaginável. Não tem outro remédio se não aceitar.

Assim que transpõe a soleira da porta do albergue, Brodeck parte a correr pelo bosque escuro, nauseado, sem olhar para trás. O silêncio é apenas quebrado pela sua respiração ofegante. E a sua mente agita-se com a tentativa de organizar pensamentos, sentimentos, e com a interrogação que se coloca a si próprio: como vai ele conseguir escrever e justificar o que não consegue compreender?
Nos dias, semanas e meses que se seguem, Brodeck vai, a pouco e pouco, abordar os habitantes da aldeia no intuito de recolher fragmentos de informação que o ajudem a redigir o relatório.
Ao mesmo tempo, a lembrança dos anos passados num campo de concentração regressa ao seu espírito de forma incessante. As torturas sofridas, os prisioneiros executados e, sobretudo, aquilo a que teve de se sujeitar de modo a fazer parte daqueles que a tudo sobreviveram…

Manu Larcenet é um escritor de excepção! Um autor moderno que nos dá uma visão intemporal das profundezas da alma humana. Que tenha escolhido exprimir-se através da Banda Desenhada é uma benesse para os seus leitores que, obra a obra, o acompanham num percurso criativo sem igual. Dos primeiros passos humorísticos e cínicos à introspecção tocante de O Combate Quotidiano, Larcenet já trilhava um trajecto pouco comum. Mas com O Relatório de Brodeck entra num novo período do seu trabalho, sombrio e violento, frio e para além de qualquer moral. Um novo patamar narrativo e gráfico.
Em termos narrativos, Larcenet define os seus próprios códigos de adaptação literária à Banda Desenhada (e é isso que o torna particularmente interessante). Embora por vezes muito fiel ao texto de Philippe Claudel, Larcenet consagra mais de 300 páginas à sua visão totalmente inédita da aldeia onde a morte teve lugar e, claro está, aos seus habitantes.
Com uma cadência rítmica que nos faz perder o fôlego, ele envolve-nos no papel ideal do leitor inteligente, chamado a apreciar de igual modo o âmago da sua narrativa e a sua formidável adaptação da obra original. Larcenet apropria-se do universo de Claudel e conta-o como se fosse novo.

E o inquérito feito por Brodeck aos habitantes da aldeia, e que toca o lado mais sombrio da alma, é feito com uma dimensão filosófica muito cara ao autor. Cada um de nós poderá encontrar um elemento suplementar de reflexão no percurso alucinante de Brodeck e em cada personagem, cujo reflexo se desenha no olhar dos outros.
Página após página, os elementos do passado, que nos são apresentados em cuidados e constantes flashbacks, acabarão por nos defrontar com uma verdade sem moral, com um final que não desejamos. E, no entanto, é o único final que faz sentido. Ao perseguir os passos de Anderer, é o seu próprio passado que Brodeck vai tentar exorcizar.

A verdade sem moral, tal como nos é apresentada por Manu Larcenet, não cede qualquer espaço ao tristemente em voga “politicamente correcto”. A crueldade humana, seja a do passado, seja a do tempo da história, é-nos apresentada de forma chocante, mas nem por isso de forma pouco credível ou gratuita. O choque advém das nossas mentes, mais ou menos adormecidas, e dos pequenos problemas quotidianos que transformamos em grandes tragédias de modo a enriquecer vidas pouco interessantes. Já aqui, todos os problemas são grandes problemas. A crueldade não é uma mera construção mental e o “politicamente correcto”, como já se disse, não tem lugar…

Em termos da narrativa, esta é daquelas obras acerca da qual se pode falar quase incessantemente, encontrando sempre um novo ângulo a explorar. Mas porque muitas mais linhas podem levar ao fastio, e porque o verdadeiramente interessante é ler-se o álbum, limito-me então a destacar mais uma abordagem feita por Larcenet que a desenvolve desde os primeiros momentos da história: a maneira como grupos de pessoas agem em uníssono, perdendo qualquer traço de personalidade, de individualidade, de carácter. A psicologia da multidão está presente em toda a obra, quer na maneira como a aldeia se reúne para matar Anderer — seguindo uma razão sem razão —, quer no modo como trata a mulher de Brodeck, no período em que este está no campo de concentração — transformando-a num farrapo humano, apenas capaz de cantarolar incessantemente a mesma melodia —, quer ainda na maneira como traçaram no passado o destino de Brodeck. É a chamada “prova da gamela” no seu melhor. Os suínos chafurdam no comedouro, alheios à fome que lhes mata os filhos. É tudo pungente, muito cruel, deveras real!

E, no entanto, apesar do tom chocante da história, há um momento, apenas um momento, em que o sol parece espreitar por entre as nuvens e parece ser possível encarar a humanidade com alguma esperança. É o momento em que Brodeck entra, por fim, no quarto de Anderer e descobre que naquela aldeia sórdida e triste há um fragmento de mundo, uma miríade de coisas a descobrir, uma vida cheia que será ceifada pela ignorância…

E se em termos narrativos já algo se disse, em termos gráficos há mais um tanto por dizer.
Num estilo realista, Manu Larcenet oferece-nos páginas sombrias, repletas de planos fascinantes, de perfis ameaçadores ou de silhuetas de árvores que sobressaem em fundos de neve que apenas parecem não ter sido desenhados.

Sem dúvida, o primeiro impacto da obra é visual, com a sucessão de páginas mudas que abrem o álbum, enquanto Brodeck se dirige ao albergue, e nas quais não há qualquer linha de texto ou onomatopeia. E sem nada ter acontecido, já podemos sentir uma tensão inexplicável. De facto, Larcenet é um verdadeiro mestre do silêncio, ou melhor, da sua utilização. Com o silêncio, ele cria choques visuais impressionantes que, por si só, fazem disparar a narrativa “muda” como murros que nos atingem certeiros vindos do nada.
Se numa prancha, o mais belo da natureza é-nos apresentado de forma a deixar-nos respirar, envoltos numa falsa paz,…

Noutra prancha, as silhuetas dos aldeões sucedem-se ameaçadoras, aumentando o peso do silêncio e criando desconforto.

Ou, se numa prancha, os membros da família Brodeck destacam-se sobre uma paisagem quase inóspita varrida pela neve…

Noutra prancha, somos agredidos pela monstruosidade das faces dos soldados invasores.

O que é certo é que umas e outras testemunham consistentemente a ausência total de concessões do artista que, com este álbum, atinge o nível dos grandes ilustradores do preto e branco. Com um traço muito próprio, não deixa de me recordar, aqui e ali, o perfeito domínio da sombra e da luz de grandes mestres como Rosinski, Hermann ou Frank Miller no seu tempo áureo.

O romance de Philippe Claudel, cuja intriga fascina pelo seu alcance filosófico, é o terreno fértil no qual Manu Larcenet vai semear os pensamentos do personagem num universo visual único, porque muito pessoal.

Utilizando plenamente o espaço que lhe é dado ao longo das mais de 300 páginas do álbum, ele desenvolve um contexto e uma atmosfera muito próprios. A pouco habitual extensão da obra, para o mercado franco-belga, é a alforria que lhe permite criar um género narrativo único. Um livro no qual os diálogos e a voz-off constituem o coração da história, mas no qual cada desenho comporta uma força exclusiva.

O Relatório de Brodeck é um conto sombrio e alucinante; um trabalho artístico de tirar o fôlego que nos é oferecido por um criador que sentimos absolutamente livre.
A arte narrativa e gráfica no seu melhor e que parece gritar-nos que quando não há heróis temos de estar preparados para levar vários murros no estômago!


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.