Análise de A Fera.
Nas profundezas da densa floresta tropical da Palombia existe um dos animais mais estranhos do mundo!
De pelagem amarelada, manchas pretas, membros simiescos e uma cauda com mais funções do que um canivete suíço, este animal esquivo e raramente avistado é, no entanto, reconhecível pelo estranho chamamento que faz ecoar por entre as árvores: Houba! Houba!
O Marsupilami (é este o seu nome), foi pela primeira vez dado a conhecer ao grande público em 1952, pelo génio criativo de André Franquin no livro Spirou e os Herdeiros.
Desde então, tornou-se companheiro inseparável de Spirou e Fantasio e do esquilo Spip, participando em várias aventuras. Para além disso, em 1987, ganha uma colecção própria, que conta já com 34 álbuns.
Até à data, o registo tinha sido humorístico e cartoonesco. Mas agora, o Marsupilami surge-nos como nunca o vimos. Num registo realista e tão belo quanto cruel, a escrita de Zidrou e os desenhos de Frank Pé estão aqui para nos encantar.
A Fera (cf. previews, sinopse e ficha técnica da edição portuguesa aqui), um álbum de grande extensão, com mais de 150 páginas, de excelente qualidade e com uma história pungente, é agora publicado em Portugal com a chancela de A Seita. A edição portuguesa, enriquecida com material retirado da edição especial francófona, inclui um caderno de 8 páginas nas quais ficamos a conhecer o processo criativo de Frank Pé para dar vida ao seu Marsupilami e o à-vontade com que o artista desenha o seu bestiário.
Vamos à história!
Fim de novembro de 1955. Um céu plúmbeo cobre o porto de Anvers, na Bélgica. Chove copiosamente. Depois de uma avaria em alto-mar, o cargueiro “Condor” chega por fim ao seu destino. No negrume da noite, a sua silhueta só é visível a cada clarão da tempestade. Mas no seu interior, bem lá no fundo do porão, a escuridão da noite dá lugar às trevas.
A bordo, uma enorme variedade de animais exóticos clandestinos, a caminho do mercado europeu, não aguentou a travessia do oceano. Avariado a muitas milhas da costa do Brasil, o Condor esteve ancorado 17 dias à espera de uma peça que vinha da Colômbia. Durante esse tempo, a tripulação não só negligenciou os animais como teve de racionar os víveres e a água para assegurar a sua própria sobrevivência. Como resultado, só os mais fortes e ferozes sobreviveram, alimentando-se dos cadáveres dos outros animais.
No grupo dos resilientes, uma espécie de macaco, de pelagem manchada e de cauda tão longa quanto uma mangueira, parece ter enlouquecido. A sua cólera mantém afastada toda a tripulação. Agora, frente a frente com o comandante, o velho traficante e o seu acólito, de visita àquele autêntico cemitério de animais, a estranha fera, implacável, vai descarregar toda a sua fúria nos humanos.
A tempestade prossegue inclemente. A chuva batida fustiga o corpo cansado do “Condor”. E por entre os trovões, bem lá ao longe é possível ouvir um grito de vitória… Houba!… Mesmo antes da fera conseguir escapar.
Ao mesmo tempo, em Bruxelas, o pequeno François Van Den Bosche é alvo do escárnio dos colegas de escola. Fruto de uma relação entre a mãe e um soldado alemão durante a Segunda Guerra Mundial, François é constantemente ridicularizado, insultado e apelidado de “Van o boche”.
Para se consolar, François, que tem alma de Noé, adora socorrer animais abandonados ou doentes. A viver com a mãe, numa casa que mais parece um jardim zoológico, o rapaz depara-se inesperadamente com um animal extraordinário, diferente de todos os que já viu…
O mais fácil de dizer acerca deste álbum é que nele vemos um Marsupilami reinventado graficamente pois é-nos apresentado de forma muito realista. Mas, embora isso seja verdade, a reinvenção do “universo marsupilami” feita por Zidrou e Frank Pé vai muito mais longe.
Desde logo, o tom da narrativa é muito mais sério e portador de várias mensagens, algo a que André Franquin não nos habituou. O seu registo pautava-se pela pura aventura e pelo humor (o que me agradou e ainda me agrada nas aventuras de Spirou). Aqui estamos no século XXI a ler uma história ambientada no pós-guerra de um país que bem a sentiu e que, a vários níveis, manteve a alma cinzenta por vários anos.
Desde logo, a indicação é-nos dada pela magnífica sequência inicial na qual, ao longo de 17 páginas, somos transportados para um verdadeiro film noir. Nas primeiras 4 páginas, a predominância dos pretos e cinzentos são o indicador do drama que se avizinha, simbolizado pela tempestade que acossa até um porto de abrigo. Seguem-se 9 páginas nas quais o preto e cinzento é suavizado por um enganador ponto de luz amarelado que, no fim, serve apenas para nos possibilitar o mergulho num porão de horrores. E, por fim, as derradeiras 4 páginas desta sequência, alternando os grandes planos com um plano panorâmico, voltam a envolver-nos com cinzentos e pretos — a Fera não perdoa, o seu coração é das trevas e o seu grito de vitória é encarnado… Como o sangue!
Volto a dizer, em termos narrativos e gráficos, não podemos estar mais longe de Franquin!
Só após estas 17 páginas nos aparece em página dupla o título do álbum, como se de um cartaz de cinema se tratasse. Fundo preto com letras gigantescas a abrir a encarnado.
Em seguida, temos duas páginas de descanso. Numa sala de aula, o professor de semblante simpático projecta para os seus alunos um filme de Charlot. A risada é geral! E podemos sentir um pouco de alívio em relação ao estado de espírito criado pela sequência inicial do livro. Mas Zidrou e Frank Pé manipulam a mente do leitor pois, logo de seguida, recuperam um dos dois tons predominantes da obra: as almas cinzentas. Um director de escola irado irrompe pela sala de aulas, atraído pelo histriónico som das gargalhadas felizes dos alunos. Não há lugar à felicidade, apesar dos apontamentos de humor sarcástico no seu discurso.
Mas esta homenagem prestada ao personagem animalesco inventado por Franquin, apesar de realista e sombria, comporta também a outra face da moeda e, por vezes, as duas faces em simultâneo.
A narrativa cruel é amenizada pela gentileza e bondade de François e da sua mãe.
E nem um nem outro têm razão para ser mais do que dois seres profundamente azedos. O rapaz, tal como os animais que recolhe e como o próprio Marsupilami, é igualmente maltratado pelos homens, simplesmente porque é filho de um soldado alemão. E maltratado pelos seus colegas, chegando estes a rapar-lhe o cabelo, numa alusão directa ao que se fez às “colaboradoras” dos nazis que pertenciam aos países Aliados.
Já a sua mãe, que no final da guerra cometeu o irreparável ao amar o “inimigo”, dando à luz o filho deste, é considerada impura, uma vergonhosa mãe solteira. E para ganhar modestamente a vida e conseguir alimentar o seu François, ela vende mexilhões no mercado do peixe, por entre olhares de clientes desconfiadas e sussurros maldizentes de colegas e “madames”.
Como se dizia, nem um nem outro são derrotados da vida; antes lutadores que enfrentam cada dia como um desafio a vencer.
É a tal outra face da mesma moeda. E é aqui que a obra de Zidrou e de Frank Pé ganha uma dimensão humana e universal. Uma história tão cruel quanto bela, tão dura quanto ternurenta, que cruza o destino de uma fera com o de um pobre rapazinho. Com um talento nato de contador de estórias, Zidrou alterna as cenas violentas com momentos divertidos e carinhosos, como aqueles em que François recolhe animais abandonados ou em que o seu professor grava os risos dos seus alunos e tenta ensiná-los de maneira diferente.
Mas, sobretudo, há a relação entre a Fera e François que nos proporciona os momentos mais intensos desta obra. Ambos sobreviventes de viagens infernais; ambos carentes; ambos incompreendidos no meio de uma selva… A dos homens! A ternura e inocência da infância face à brutalidade dos homens. E a vitória da amizade pura.
Duas faces da mesma moeda!
Uma história arrepiante, sinistra, sombria que nos narra os destinos tristes de muitos animais, bem como do Marsupilami, e também o de um rapazinho e da sua mamã, abandonados às agruras da vida.
E, contudo, uma história bela, de esperança, na qual a ternura nunca está envergonhada e chega até nós através das acções de François e da sua mãe, mas também pelas acções de um personagem de rara gentileza neste mundo de brutos — o senhor Bonifácio, professor de François e a quem os autores resolveram atribuir os traços fisionómicos de André Franquin (bela homenagem!).
E se o talento a que Zidrou nos habituou (ver Verões Felizes) sai desta aventura imaculado, o que dizer do virtuosismo de Frank Pé?!
A sua arte encontra-se no auge e, já agora, a sua coragem também! Pois não é qualquer um que se atreve, e com sucesso, a dar o seu cunho a um personagem tão icónico quanto o célebre Marsupilami. Longe do pequeno animal divertido e caricatural de Franquin, o Marsupilami ganha agora contornos realistas, tanto a nível de imagem (numa mescla de vários animais) como a nível comportamental. E a este nível é notável o trabalho de contenção do artista que limita as expressões faciais da Fera ao que a sua musculatura facial permite. Não esperem por isso ver um Marsupilami de sorriso rasgado ou de rosto particularmente triste. Esperem sim ver um animal que, sentindo-se acossado pelos homens, torna-se extremamente violento. E quando expressa sentimentos, pode fazê-lo, por exemplo, com um ligeiro aproximar da pata. Sem dúvida, Frank Pé deu-se a um enorme trabalho para criar o “seu” Marsupilami.
Da arte de Frank Pé neste A Fera, o que menos surpreende são todos os outros animais que povoam a história. E digo isto não no sentido crítico, mas porque o artista sempre nos habituou à excelência do seu bestiário. Em todo o caso, não deixa de nos prender a atenção a velha pileca alcoólica, o leitãozinho de estimação ou o aguerrido frangainho depenado, sempre pronto a dar o corpo às balas.
O pincel deslumbrante de Frank Pé obriga a que cada prancha magnifica mereça, pelo menos, um momento de contemplação.
Soberbo evocador de ambientes expressionistas, a sua sequência de abertura da obra (como já foi referido), é digna de um romance de Simenon e do seu personagem, o Inspector Maigret, ou dos filmes mais noirs de que nos possamos recordar.
Ele consegue soprar-nos o frio do infortúnio, da miséria, do sofrimento e da crueldade dos homens tão bem quanto o calor de um amor a eclodir ou de uma amizade fora do vulgar.
De tempos a tempos, vinhetas gigantescas com diálogos minimalistas ou inexistentes, demonstram-nos como uma imagem de tal maneira forte é suficiente por si própria.
Também de destacar é o cuidado com que o artista recriou os ambientes citadinos de Bruxelas dos anos 50 do século passado. Tanto a nível arquitectónico como de mobiliário urbano, de vestuário, de costumes e até de anúncios de rua.
Por fim, uma breve menção ao talento de Frank Pé no que diz respeito às expressões faciais, sempre muito bem conseguidas, e à sua paleta de cores para esta obra que transmite na perfeição os principais estados de espírito da narrativa.
A Fera é um romance gráfico monumental que mistura com inteligência um realismo feroz com uma candura emocionante.
Uma obra tão tocante quanto pertinente, que nos mergulha nas questões do tráfico de animais exóticos, do abandono de animais, mas também nas questões universais da intolerância, do preconceito, da miséria, do assédio e da intimidação a que o mundo actual, convertido ao léxico anglo-saxónico, insiste designar por “bullying”.
Apaixonante, sublime, indispensável, tocante!
Não tenhamos medo das palavras. A Fera é uma maravilha… Apenas!
Ficamos à espera que a frase de fecho “Fim do episódio” prenuncie uma rápida continuação, até porque não se quer que o ninho do Marsupilami fique vazio…
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.