Análise de O Gato do Rabino, volume 6 – Não terás outro Deus além de mim.
Lá existe um gato!
Pelos começos do século XX. Norte de África. Argélia. Algures no bairro judeu de Argel, no tempo em que o país era uma colónia francesa.
Lá existe um gato que um dia comeu um papagaio. O papagaio de Zlabya, a filha do rabino. E, de um momento para o outro, o gato foi abençoado com o dom da palavra. Já o papagaio, como podem calcular, perdeu-a!
Daí em diante, o gato irá encetar as discussões mais deliciosas com o patriarca da família judia, e até com o rabino do rabino, enquanto vai ronronando dengosamente no regaço da curvilínea Zlabya.
O Gato do Rabino é uma série franco-belga de grande sucesso, criada por Joann Sfar, que estreou em 2002 e que conta já com 11 volumes publicados. Em Portugal, com a publicação pela Ala dos Livros deste “Não terás outro Deus além de mim”, são agora 6 os volumes disponíveis.
O Gato do Rabino observa este mundo (e, por vezes, até o outro) e reconta-o, para nosso gáudio, numa fábula inteligente que agradará aos amantes do Oriente, apreciadores de belas mulheres e a todos aqueles para os quais a metafísica e o existencialismo dizem muito ou dizem nada!
Vamos à história!
O gato está triste! A sua bela dona acaba de se casar. E para tudo piorar, está grávida. Grávida! Como é que Zlabya pôde ser tão egoísta?! Como pôde ela não pensar no seu gato? Porque é que não lhe pediu a opinião? A autorização? Porque não pensou nele? O gato está triste!
Ele sente que a sua vida está prestes a ser abalada e que a vinda de um bebé fará estremecer as fundações da sua felicidade. Ele ficará mesmo pior que o marido e que o pai dela. Pobre gato! Ainda para mais, ele que até fala, não tem o direito de utilizar esse dom, tendo de se limitar, aos olhos da sua amada, a ser um mero gato… Idiota!
Mas nem tudo é mau. Pois, quanto mais Zlabya engorda, mais se mantém perto dele. E isso, meus amigos, o gato adora!
Até que um dia, num momento de puro deleite em que afocinha no abdómen insuflado da dona, o gato leva um pontapé do bebé. É uma revelação, uma epifania. O gato pergunta-se: “E se o centro do mundo não for eu?”
Com a cabeça cheia de questões existenciais, ele vira-se para o seu mestre, o rabino, que o aconselha a orar. Mas para isso não é preciso ser-se crente? E o gato, é crente?
O tempo passa. O bebé nasce. O dia a dia de Zlabya cada vez mais é ocupado pelo recém-nascido. O gato começa a sentir-se abandonado. Como deverá ele chamar a atenção da dona? Deverá partir? Deverá suicidar-se de modo a que se interessem um pouco por ele? O gato decide partir. É tempo de reencontrar o seu instinto de felino; de se tornar um vulgar gato vadio. Mas para isso vai ter a ajuda de um… Ratinho. Um ratinho ainda mais filósofo, mas pragmático.
A seu tempo, este sexto álbum de O Gato do Rabino foi tão aguardado no mercado francófono como era agora aguardado em Portugal. Joann Sfar conseguiu criar grande expectativa nos seus leitores. E isso pode ser bom, mas também pode ser mau. Na verdade, alguns poderão dizer que este volume não trás nenhuma surpresa. Mas, na verdade, é uma excelente súmula do espírito da série e, por isso mesmo, é também um bom ponto de partida para novos leitores.
O objectivo de Sfar não é, propriamente, dar-nos a conhecer a Argélia, mas mais levar-nos para um ambiente geográfico e temporal caloroso e terno. E, claro está, de nos fazer reflectir acerca de diferentes temas filosóficos mais ou menos universais como a religião, o amor e as suas diferentes formas, as mulheres, o ciúme, a tolerância… Os temas são quase inesgotáveis.
Aqui, o amor do gato pela sua dona, a filha do rabino, vai fazê-lo viver o sofrimento do ciúme, o desespero amoroso e todas as formas de suplício a que se sujeita aquele que não pode declarar o seu amor.
Mas, e este é o elemento novo na série, também vai abordar a questão tão masculina da dificuldade de estar face a mulheres no momento quase sobrenatural que é a chegada de um bebé. E, neste sentido, é o álbum mais sensível da série. E também o mais rico em temas. Só temos de ter o cuidado de não o ler demasiado depressa, caso contrário corremos o risco de nos passarem ao lado. É preciso parar e reflectir, nem que seja por uns segundos.
Com uma narrativa um pouco mais lenta do que a do álbum anterior, a história é absolutamente centrada no seu herói. O que é natural, pois os gatos gostam de ser o centro de todas as atenções. É uma verdadeira ode ao gato (do rabino), às suas qualidades (apego aos donos, inteligência, eloquência filosofante) e aos seus numerosos defeitos (os seus ciúmes, o seu hedonismo e até a sua episódica crueldade). Eles são expostos, dissecados. E o gato deveria ficar contente, pois não se fala de nada para além dele.
Quanto ao Rabino, aparece pouco. Mas não desesperemos! É só aguardar pelo próximo álbum.
A arte de Sfar não mudou muito desde o primeiro álbum. O seu traço continua irrequieto e aparentemente “tremido”. E, no entanto, ninguém melhor que ele para gizar a aura felina de um belo gato oriental ou as margens do porto de Argel.
O seu desenho parece aproximativo, mas está longe de o ser. Numa primeira leitura, pode até parecer simplista. Mas observem bem, mais de perto, e encontrarão as transparências nas vestes, composições elegantes e detalhes e tons que o aproximam até de Henri Matisse.
Para além disso, Sfar desenha muito bem mulheres. Não são as pin-up de um Marini ou de um Berthet, mas mulheres sensuais que amam a vida e que a devoram com delicadeza.
“Não terás outro Deus além de mim” apaixona e subverte, pois fala de amor com uma justeza rara. De amor, traição, abandono, resignação, consolação. De mudança e imutabilidade. Das percepções diferentes do tempo, para os homens e para os gatos.
Uma lição de filosofia numa prédica inteligente e agradável. Como a recusar? Como não sucumbir ao charme egocêntrico do felino que ganha vida com a emotividade de um traço tremido? Como não apreciar este título tão dogmático quanto humorístico: “Não terás outro Deus além de mim”?
Para além destas dúvidas socráticas, resta-me desejar um regresso para ficar a este felino filosofante, o Gato do Rabino.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.