Blake e Mortimer ainda mais British!

Blake e Mortimer ainda mais British!

Análise de O Último Espadão.

Há momentos singulares, aparentemente sem significado de maior, que marcam a história de qualquer coisa. Não contamos com eles; não os percepcionamos na sua importância ou grandeza. E, contudo, eles estão lá!

A 26 de setembro de 1946, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, surge na Bélgica uma pequena revista de Banda Desenhada de nome Tintin. Tem apenas 12 páginas e nela quatro autores mostram o seu talento. Hergé é um deles. Outro é um quase desconhecido de nome Edgar Pierre Jacobs. Hergé prossegue a sua carreira de sucesso com a aventura de Tintin, O Templo do Sol. Já Edgar P. Jacobs inicia As Aventuras de Blake e Mortimer com as primeiras páginas de O Segredo do Espadão.

Foi há 75 anos! E o panorama da 9.ª Arte europeia nunca mais seria o mesmo. Sem internets ou Facebooks, Hergé e Jacobs tornaram-se verdadeiros “influencers” e, dois anos mais tarde, já com Jacques Martin (Alix), passam a ser considerados os fundadores da chamada “linha clara”. As suas histórias e arte influenciaram milhões de leitores e de criadores em todo o mundo e em vários meios culturais.

Jacobs morre em 1987 e os onze álbuns de Blake e Mortimer que publicou em vida (mais um pos mortem com a colaboração de Bob De Moor) são as peças fundadoras de uma das maiores séries de culto da Banda Desenhada a nível mundial. Felizmente, e ao contrário de Hergé, Jacobs não levou os seus heróis consigo para o outro mundo. E é por isso que desde 1996 várias equipas de argumentistas e desenhadores têm criado novas aventuras do capitão e do cientista britânicos. Assim, aos 12 álbuns de Jacobs temos de juntar mais 16 de novos criadores.

A retoma das Aventuras de Blake e Mortimer em 1996 fez-se pelas mãos do prestigiado argumentista Jean Van Hamme e pelo virtuoso Ted Benoit com O Caso Francis Blake. Nada mais justo, por isso, que o álbum de comemoração dos 75 anos dos personagens seja escrito por Van Hamme e que este prossiga as muitas questões que ficaram por responder em O Segredo do Espadão de 1946. A acompanhar o argumentista estão os artistas holandeses, Peter Van Dongen e Teun Berserik, que já nos tinham mostrado as suas capacidades de mimar o estilo de Jacobs nos dois volumes de O Vale dos Imortais.

É então para uma viagem no tempo, tão nostálgica quanto surpreendente, que vos convido com a sugestão de leitura de O Último Espadão que a ASA acaba de publicar ao mesmo tempo que o resto do mundo.

Vamos à história!

Janeiro de 1948. É um facto que a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945. Mas nem todos reconhecem a derrota.

Num escuro final de tarde, o carro do major Rupert Humbletweed desloca-se a alta velocidade com destino ao aeroporto militar de Hasley. O major deverá apanhar um avião para o Médio Oriente onde o espera uma missão ultrassecreta que lhe foi atribuída pelo S. H. Britânico.

No meio do nada, a viatura é mandada parar por um grupo de homens vestidos de militares. Estes, assassinam a sangue frio todos os ocupantes e tomam conta do automóvel. Os dados estão lançados! Humbletweed é substituído por um duplo que parte em seu lugar para o Médio Oriente.

O primeiro acto de uma maquinação diabólica contra Inglaterra acaba de ser jogado… Na perfeição!

Alguns dias mais tarde, a coberto da noite, um hidroavião aproxima-se sorrateiramente de uma margem agreste da costa Noroeste da República da Irlanda. Após amarar, dele parte um pequeno bote pneumático que deixa em terra um clandestino. À sua espera está Bruce Milligan, o homem do IRA (Irish Republican Army) que participou na emboscada feita ao major Rupert Humbletweed. O clandestino é um misterioso Standartenführer, um nostálgico do III Reich. Este, momentos depois do hidroavião levantar voo, olha pacientemente para o relógio. O avião explode em pleno ar. É preciso não deixar testemunhas da sua chegada à Irlanda.

Pouco depois, os dois homens chegam a uma casa isolada no meio do campo. Já instalados, o antigo oficial das SS explica a sua presença ali aos membros do IRA presentes e expõe o seu plano para desferir um golpe fatal a Inglaterra e assassinar a família real britânica fazendo explodir o palácio de Buckingham.

Entretanto, numa base secreta em Makran/Gwadar, na província do Baluquistão, no Paquistão, o Professor Mortimer, acompanhado do seu fiel Nasir, é recebido pelo duplo do Major Humbletweed. O objectivo é supervisionar a evacuação da base dos últimos cinco espadões, sobreviventes da guerra contra Basam-Damdu (ver O Segredo do Espadão).

Mas, na verdade, tudo começou uns dias antes num jantar com o capitão Francis Blake no Centaur Club. Blake, agora à frente do MI5, encarrega Mortimer de uma missão da mais alta importância…

Jean Van Hamme, depois de jurar não voltar a escrever uma aventura de Blake e Mortimer, quebra a promessa. E em boa hora o fez!

Desde 1996, quando surgiu um novo álbum da série após a morte de Edgar P. Jacobs 9 anos antes, Van Hamme já escreveu o argumento para cinco aventuras dos famosos heróis. E se em O Caso Francis Blake, o seu primeiro trabalho nesta colecção, conseguiu relançar a série na perfeição, agora com O Último Espadão consegue ir mais além.

Aparentemente, o enredo elegante é de contornos clássicos. O que até não seria de estranhar pois este 28.º álbum da série comemora os 75 anos do legado de Jacobs. E até por isso, há nele um regresso às origens, pois tudo começou em 1946 com as cerca de 150 páginas de O Segredo do Espadão.

E se os cânones fixados por Jacobs estão todos em O Último Espadão, Van Hamme consegue dar o seu cunho muito próprio não só ao correr da narrativa como às soluções que engendra para tornar a aventura mais interessante e moderna aos olhos do leitor actual.

Desde logo, uma das premissas da acção baseia-se em acontecimentos reais. De facto, durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães planearam um ataque ao palácio de Buckingham com o intuito de ferir mortalmente o reino de Sua Majestade, o rei Jorge VI (pai da actual rainha, Isabel II). O projecto acabou por ser abortado em 1944. Van Hamme utiliza este contexto histórico e geopolítico, envolvendo uma Irlanda que, tal como Portugal, se manteve neutra durante o conflito.

Poderá parecer pouco original utilizar o velho espadão, criado em 1946 por Jacobs, para comemorar os 75 anos das aventuras dos dois aventureiros britânicos. Na realidade, tal afirmação não poderia estar mais errada. Se a primeira aventura tem por título O Segredo do Espadão, a bem da verdade pouco ficamos a conhecer acerca da aeronave-submarino, arma de destruição massiva. O segredo manteve-se, por isso, durante 75 anos. E agora, Van Hamme parece ir revelá-lo…

E se, na sua infância, Van Hamme ficou chocado e mesmerizado pelo realismo que Jacobs imprimiu à primeira aventura de Blake e Mortimer, agora honra-o com igual realismo, não só adaptado ao século XXI, mas livre também dos pudores e da censura que mantinham na obscuridade certas realidades cruas na Banda Desenhada dos anos de 1940-1950. Assim, sendo o seu personagem favorito o Professor Mortimer, é este que Van Hamme vai carregar com as maiores provações. E, ainda para mais, pela mão fria de Francis Blake, que tem a possibilidade de suprimir Mortimer pelos serviços secretos ingleses caso a missão que lhe atribuiu seja malsucedida. Poderá parecer chocante para aqueles que acompanham há anos estas aventuras. Mas Van Hamme não faz mais que insuflar o realismo, que tanto o seduziu na sua infância, levando-o um pouco mais longe. Actualiza Jacobs sem trair Jacobs, mantendo o cunho Jean Van Hamme com o qual nos habituou em séries como Thorgal, XIII ou Largo Winch.

Outra inovação com que Van Hamme cunha a sua narrativa é o humor. O ambiente “so british” procurado por Jacobs nunca permitiu que o criador incluísse na série o humor. Agora este surge com conta, peso e medida, sem exageros, sem desvirtuar o ambiente sério de uma história de espionagem e sem esquecer o tal realismo que atrás se referiu. Van Hamme conhece bem o que faz mover a mecânica jacobsiana. E diverte-se a acrescentar algumas fantasias ao estilo tradicional da narrativa. Isso acontece, por exemplo, com Marge, secretária do capitão Blake no MI5. O inusitado acontece! Blake pede-lhe que, pelo Rei e pela Nação, ela use o seu corpo e arranque os segredos de alcova a uma suposta “toupeira”, infiltrada no MI5. Marge, zelosa e orgulhosa de ser inglesa, não hesita. Um pequeno passo em frente que permite à narrativa situar-se para lá da mera cópia de Jacobs.

Um distanciamento que faz passar subtilmente o álbum no registo da homenagem. Aliás, isso é bem evidente na terceira vinheta da página 49. Vemos Marge na cama, despenteada, o rosto a espelhar uma sensação de prazer, sem dúvida após uma cena quente de sexo. À beira da cama está o amante, sentado, uma perna em cima do cobertor e outra de pé pousado no chão. Pelo contexto, a cena pode ser considerada ousada, e sê-lo-ia em 1946. Mas segue as rígidas regras de então que obrigavam a que uma cena de cama teria sempre de retratar um dos intervenientes com um pé no chão. Os dois dentro da cama é que nunca! Aqui está um pingo de humor e de modernização que pode passar ao lado de alguns leitores.

Van Hamme é Van Hamme e aqui parece divertir-se como nunca. Se em O Caso Francis Blake escreve um romance de espionagem, em O Estranho Encontro passa para um registo de Ficção Científica e em A Maldição dos Trinta Denários escreve um mistério arqueológico, em O Último Espadão pega no avião atómico criado por Mortimer, coloca-o no centro da aventura e subverte com inteligência e candura várias das regras criadas por Jacobs sem, no entanto, deixar de nos oferecer um excelente álbum Blake e Mortimer. Van Hamme diverte-se! Faz explodir espadões e instalações secretas, executa carnificinas com respingos de sangue, faz regressar um arqui-inimigo mais impiedoso que nunca, mas dinamita alguns dos códigos da série, introduzindo o humor, atribuindo um papel algo libertino a Marge, não hesitando em colocar Blake e Mortimer face às suas próprias responsabilidades tendo em conta a violência da aventura, explicando a razão porque Blake não é mais que capitão apesar do seu alto cargo nos serviços secretos, dando um papel mais activo a Nasir (que Jacobs acabou por transformar num doméstico) e permitindo-se até uma alusão a uma suposta homossexualidade dos dois heróis.

Por parte de Jean Van Hamme a missão foi bem-sucedida. Argumento e narrativa estão ao nível dos melhores álbuns de Blake e Mortimer. Mas, e o que dizer da dupla de desenhadores?

Peter Van Dongen e Teun Berserik já tinham sido responsáveis pela arte de O Vale dos Imortais (volumes 25 e 26 da série). O seu regresso nesta vigésima oitava aventura, mostra-os mais arejados, perfeccionistas e dignos herdeiros de Edgar P. Jacobs. Mas, tal como Van Hamme, os desenhadores souberam inovar e brincar com os códigos da série. Em suma, o trio divertiu-se à grande! Vejamos como.

É nítida a progressão do traço dos dois desenhadores, sobretudo se pensarmos que cada um executou as suas próprias páginas. Para o leitor, é difícil perceber quem desenhou umas e quem desenhou outras. Como Peter Van Dongen teve possibilidade de explicar na Comic Con Portugal 2021, a única ingerência que faziam nas páginas um do outro era ao nível de assinalar correcções, sobretudo ao nível do estilo Jacobs: por exemplo, a posição de um braço ou a postura de um personagem.

Os fãs da série não vão sentir-se defraudados. Van Dongen e Berserik são exímios na criação dos décors, transportando-nos, invariavelmente, para as memórias associadas ao Segredo do Espadão, mas também a O Mistério da Grande Pirâmide ou A Marca Amarela. Seja pelo ambiente retratado no Centaur Club, numa rua londrina ao final da tarde ou nas paisagens desertas na província do Baluquistão.

De igual modo, as cenas em Makran, nas imediações da conhecida pirâmide, conseguem despertar a nostalgia de que a série também vive. Assim como personagens que não são estranhos à história dos espadões, como os cavaleiros da tribo Bezendjas ou o vizir de Turbat, Mohammed Wali. Personagens e cenários estão perfeitamente retratados ao melhor estilo da “linha clara” realista.

A tradição é seguida pelos desenhadores até nos “efeitos especiais” que emanam de um girar de uma maçaneta de porta, de um rosto espantado, de alguém que retoma a consciência depois de ser agredido ou de um grande plano de uma explosão. Tudo muito ao estilo de Jacobs.

De igual modo, as encenações e a sequência rítmica das vinhetas estão adequadamente conseguidas de modo a acompanharem o argumento de Van Hamme.

E é precisamente neste ponto que os desenhadores, tal como o escritor, mostram como se divertiram com a produção artística deste álbum.

Desde logo, com o piscar de olhos a determinados momentos icónicos da cultura contemporânea, como é o caso da atribulada sequência acrobática do sargento Nasir que nos remete de imediato para uma proeza semelhante executada pelo arqueólogo/aventureiro Indiana Jones.

Da mesma maneira, e a pedido de Van Hamme, com a criação de uma solução técnica para tornar possível aos espadões aterrarem. Em 75 anos, estas aeronaves só tinham sido avistadas em pleno voo, debaixo de água ou a serem transportadas por viaturas gigantescas.

Ou ainda com perseguições infernais no deserto, fora de pista, por carros que correm atrás de aviões, por cavalos que correm atrás de carros ou por aviões que parecem fugir de cavalos.

Mas como nos confidenciou Peter Van Dongen na Comic Con, talvez a sua maior diversão tenha sido introduzir mulheres no Centaur Club, coisa absolutamente impossível de se fazer num clube de cavalheiros britânicos. Ora, vejam bem as vinhetas 1 e 6 da página 10. Elas estão lá e Van Hamme reparou na brincadeira. Mas, a bem do rigor histórico, pediu que fossem excluídas numa segunda edição do álbum.

Jean Van Hamme cumpriu a missão. Peter Van Dongen e Teun Berserik cumpriram a missão. Todos cumpriram a missão com sucesso. O resultado é este 28.º álbum das Aventuras de Blake e Mortimer, com uma intriga bem urdida, exótica, dinâmica, plena de reviravoltas e que nos deixa a pairar num estranho ambiente nostálgico e romantizado entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.

Na minha opinião, O Último Espadão faz parte dos três melhores álbuns publicados após a morte de Jacobs em 1987: O Caso Francis Blake, de 1996, com desenhos de Ted Benoit e talvez o mais conseguido graficamente, e O Último Faraó, de 2019, um álbum “fora de colecção”, com o inconfundível traço de Schuiten.

Este é o álbum que reconcilia os amantes de Blake e Mortimer e os seus novos leitores que, por vezes, têm sido maltratados por uma ou outra equipa que retomou a série. Um álbum digno de ser comemorativo dos 75 anos das aventuras de B & M. Nele temos tradição e inovação.

No selo criado para comemorar a efeméride pode ler-se “So british desde 1946”. Ao bom estilo burguês dos detectives Dupond e Dupont, eu diria mais: “Even more british desde 1946!”

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