
Análise de Oceano Negro.
Ele há os absolutistas e os liberais. Os puristas e os modernistas. E antes que algum destes rótulos induza o leitor em considerandos e qualificativos, deixem-me dar-vos a minha opinião. Nenhum é melhor que o outro e para ambos se encontra argumentos contra e a favor. Como em muitas coisas, o ponto de equilíbrio encontra-se no meio.
E vem isto a propósito de quê? Do novo álbum de Corto Maltese, publicado recentemente em Portugal pela Arte de Autor (originalmente pela Casterman) com uma nova equipa de argumentista e desenhador franceses, Martin Quenehen e Bastien Vivès, respectivamente.
Mas este não é um álbum qualquer de Corto Maltese e foge por completo à continuidade de todas as aventuras do mais célebre marinheiro romântico da Banda Desenhada europeia.
Na verdade, ao contrário das aventuras tradicionais do herói que se desenrolam nas primeiras décadas do século XX, Oceano Negro tem a acção localizada no começo do século XXI, mais precisamente, em 2001. Corto Maltese é o protagonista, mas não mais numa era em que o telegrama não deixava adivinhar o email e o telefone (fixo) estava longe de habitar os bolsos da maior parte da população mundial. Então, o mundo parecia maior, as distâncias mais longas e a Balada do Mar Salgado colocava-nos à deriva num Oceano Pacífico exótico e longínquo.
Os puristas de Corto Maltese darão saltos irados e os modernistas darão saltos de júbilo. O facto é que as duas facções darão saltos, o que, por si só, já significa algo.
Por isso, antes de mais…

Vamos à história!
Não há estrelas! O negrume da noite faz com que céu e mar se fundam num só, numa espécie de abismo sem fim. São as luzes da pequena embarcação que quebram as trevas, mas apenas como uma pequena gota de água luminosa perdida no oceano.
A bordo, Corto Maltese transporta três homens na direcção de um iate. A acostagem é feita. Marcus, um dos homens, pede a Corto para ficar à espera deles, enquanto fazem a abordagem.

Passados alguns minutos, Corto ouve dois disparos. Ele interroga-se sobre o que se passará e, intrigado, sobe a bordo. À sua frente, um corpo jaz no chão; uma mancha de sangue espalha-se pela parede. Marcus pede-lhe para voltar ao seu barco. Corto apercebe-se que Marcus e os seus homens procuram alguém.

Mas ao voltar para trás na direcção do seu barco, cruza-se com um pequeno homem que tenta esconder-se na cozinha do iate. Corto pede-lhe que o siga prontamente até à sua pequena embarcação. O homem hesita. Marcus e os seus homens dão-se conta do que está a suceder-se. Fazem fogo cerrado sobre Corto e o homem. Mas, à justa, eles conseguem escapar. O homem pergunta a Corto porque o salvou. Corto diz-lhe que não mata por dinheiro e pergunta-lhe porque é perseguido pelos piratas. O homem revela guardar um tesouro e, sabendo-se já condenado, tem como último desejo rever a filha pela última vez, perto dali, em Tóquio, onde é aguardado por um assassino a soldo…

Corto Maltese foi criado por Hugo Pratt em 1967. Corto rapidamente ganha o estatuto de série culto muito para lá das fronteiras europeias. Antes de morrer, em 1995, Pratt mostra-se a favor da continuação das aventuras do seu herói. E assim, 20 anos depois, em 2015, Juan Díaz Canales (argumento) e Rubén Pellejero (desenho) são o duo escolhido para fazer reviver o célebre marinheiro maltês.
E se a vida dos dois não tem sido fácil — pelas inevitáveis comparações com o trabalho original de Hugo Pratt —, então o que dizer agora do que se passa com Martin Quenehen e Bastien Vivès? É que a eles coube a ingrata tarefa de transportar as aventuras de Corto Maltese para o século XXI. Se os puristas não estavam convencidos com o trabalho de Canales e Pellejero, agora sentem como se um punhal se lhes cravasse no coração. Mas será preciso chegar a tanto?
Nem a tanto nem a tão pouco. Este é um neo Corto Maltese, de aspecto mais jovem, visual mais descontraído. A indumentária de marinheiro, o chapéu de comandante e o sobretudo escuro já não existem. Perderam-se nas brumas do tempo e deram lugar a t-shirt branca debaixo de uma camisa aberta e a um boné de pala (que, apesar de tudo, é usada para a frente!).

Mas para lá do “look”, dos “gadgets” e dos inevitáveis apontamentos de contemporaneidade, Corto continua um marinheiro, um pirata quando lhe convém, sempre atraído por uma boa caça ao tesouro.
De facto, não há continuidade em relação às aventuras já conhecidas de Corto Maltese. Mas há continuação… Continuação do que é importante: o espírito de Corto Maltese, ainda que, por vezes, um pouco mitigado.
Mas Corto é Corto, independentemente de estarmos nos anos 20 do século XX ou no alvorecer do século XXI. Não interessa a época, pois o personagem, com um toque aqui e ali, é intemporal. E o que sempre o caracterizou está lá: a despreocupação, a ironia, o mistério, a acção, a elegância e breves apontamentos de humor. O aventureiro, anarquista, curioso, culto.
Mas, ao mesmo tempo, os autores parecem adoptar essa ironia de Corto (ou de Pratt), transportando um personagem aparentemente datado para a contemporaneidade. E se os leitores quase anseiam por ver o famoso chapéu de marinheiro, os autores antes lhes oferecem seis ou mais chapéus de pala a cobrirem a cabeça do herói. É uma suave desconstrução do mito para melhor o reinterpretar.
E depois voltam à originalidade, iniciando a aventura num país onde Corto nunca esteve: o Japão. Pelo meio, o mar, esse personagem de direito próprio que constantemente actuou nas velhinhas aventuras de Corto. Segue o périplo para os Andes peruanos para terminar, de forma poética e literária, na Espanha do Al-Andaluz, debaixo dos tão conhecidos arcos da mesquita de Córdova, num encontro entre Ocidente e Oriente, no ano do 11 de Setembro, como manda o código da ironia de Corto Maltese. A tripla ironia coroa-se com mais um encontro entre Ocidente e Oriente, agora entre a agente secreta da Naicho e Maltese-san.

Perfeitamente integrados na narrativa, surgem-nos várias referências e piscares de olho ao mito e ao seu espírito: Baudelaire, Kerouac e, claro, Rasputine, entre outros.

A dupla de Quenehen e Vivès não quer, nem pela pluma nem pelo pincel, imitar Pratt. Apenas homenageá-lo! E, como se vem a dizer, se as diferenças são nítidas, as aproximações também. Um com diálogos bem cinzelados, curtos, dinâmicos e grande fluidez narrativa e o outro com um traço particularmente eficaz, inventivo e elegante.
Aliás, se Pratt fazia poemas com a força do seu traço negro, Vivès agarra em todas as tonalidades do cinzento e transforma-o em uma infindável paleta de cores. A isso acrescenta um bom domínio da luz e consegue, por exemplo, imergir-nos por completo no turbilhão de néon de Tóquio.

Embora diferente, a poesia do desenho e o sentido da composição de Bastien Vivès acabam por o aproximar de Pratt. Como ele, Vivès sabe desenhar admiravelmente os sentimentos, as emoções, aqueles pequenos momentos de paz, os jogos de olhares, e até os silêncios. E o que dizer das suas magníficas iluminações expressionistas, nomeadamente logo no começo do álbum quando nos faz participar na abordagem do iate!?

E depois, como em qualquer aventura de Corto Maltese que se preze, há uma rica galeria de mulheres, tão doces quanto perigosas. E, como sempre, mesmo as que mais o cativam não conseguem segurá-lo e evitar que volte a partir por esse mundo do século XXI que bem podia ser o de há 100 anos.
Sejam as Cosmic Sisters, feministas psicadélicas, ou a serena agente secreta japonesa…

Seja a peruana, Raua, descendente de uma princesa Inca, ou a sensual Uzume, filha do dissidente do Oceano Negro…

Nenhuma bate Freya, a jornalista/activista que tem um passado com Corto e que “inaugura” as aventuras explicitas com o marinheiro. Para os mais atentos, não deixará de recordar a Laureline do Valerian, de Christin e Mézières.

Em Oceano Negro, Martin Quenehen e Bastien Vivès arriscam perigosamente, colocam a cabeça na guilhotina, mas parece-me que a fortuna não lhes granjeou um destino semelhante ao de Maria Antonieta. Numa série mítica, na qual uma miríade de códigos se funde em inúmeros arquétipos, os dois autores souberam modernizar Corto Maltese com inteligência, preservando a essência e o espírito.
É mais uma maneira (mas não uma qualquer) de manter vivo um dos monstros sagrados da 9.ª Arte. E talvez, até, uma maneira de chegar a um novo público e fazê-lo descobrir o mundo da década de 1920 que constitui o universo de acção de Corto Maltese.
Com Oceano Negro, Corto entra na modernidade sem ser realmente moderno. Um homem entre duas épocas; um herói fora do tempo e fora do seu tempo. Mas só nós, leitores, sabemos disso. Corto limita-se a cultivar o diletantismo dos cavalheiros aventureiros, as amizades e a consideração perante as mulheres, plurais e idealizadas, independentemente das épocas por onde vai navegando.
E não esperem agora que os códigos de conduta do herói sofram grandes alterações (nem é isso que queremos). Corto deixa marca, mas é etéreo. Foge-nos por entre os dedos como Éolo, mas faz-nos correr atrás dele numa tentativa de sermos sempre levados a bom porto. Aliás, é Corto que o diz, quando Freya lhe pergunta que deus é ele…

O começo e final deste álbum são particularmente bem conseguidos. E uma aventura que termina em reticências faz-me crer/querer (n)uma continuação.
Afinal, o espírito de Corto Maltese mantém-se!
Um apontamento final para o caderno extra de 16 páginas incluído na edição portuguesa e que contém um depoimento do director editorial de BD da Casterman, um artigo do jornalista Fausto Fasulo e vários desenhos a preto e a cores de alguns dos personagens de Oceano Negro, todos realizados por Bastien Vivès.

Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.