Análise de Duke vol. 6: Para Lá da Pista.
Mesmo quando a continuidade é o que nos permite acompanhar o desenvolver de uma série, e sem a leitura dos vários livros ou episódios que a compõem, a nossa percepção do todo pode estar comprometida, mesmo assim há álbuns na Banda Desenhada ou episódios na televisão que valem por si.
E é precisamente isso que acontece com o novo álbum da série Duke que acaba de ser publicado pela Arte de Autor (cf. previews e ficha técnica da edição nacional aqui).
Duke é uma série que resulta da parceria do consagrado Hermann e de Yves H., pai e filho. E se este 6.º volume se integra por completo na continuidade da série (como se pode ver pelo artigo Aconteceu no Oeste, com a análise dos primeiros 5 volumes da série), lê-lo e analisá-lo por si só é uma verdadeira satisfação.
Vamos à história!
A neblina matinal parece ter congelado o correr do tempo e paira, suave, na clareira rodeada de árvores. Uma figura difusa montada a cavalo recorta-se na neblina. É Mullins que, a convite de Ogden, visita o acampamento deste.
Ogden mostra-lhe o que esconde num cofre no fundo da sua tenda. O olhar de Mullins cintila de assombro e incredulidade ao ver as enormes e reluzentes pepitas de ouro. Ogden convida-o para ser o seu braço direito na exploração do grande filão e Mullins aceita.
Dois meses depois, naquele mesmo local, Ogden funda a cidade de Ogden. Mas, enquanto comemora a efeméride com os seus trabalhadores, um cavaleiro de coldre bem à vista traz-lhe uma mensagem de Mullins. Ogden tem de abandonar os terrenos pois são pertença da Mullins Mining Company. Mullins observa nas sombras e o seu semblante deixa transparecer o prazer que tem naquela traição.
Mas isso foi há treze anos. Agora a realidade é bem diferente. Ogden voltou a enriquecer e Mullins caiu em desgraça.
Agora é o tudo ou nada! A missão de transporte de 100.000 dólares que Mullins confiou a Duke não cessa de envenenar a vida do ex-xerife adjunto.
Agora não há tempo a perder! Peg foi feita prisioneira por King. E talvez a única maneira de recuperar a sua liberdade seja a entrega da avultada quantia a King.
Agora é o tempo do desespero! Mullins está na ruína e vê a sua cidade ser abandonada pelos habitantes. Duke, acompanhado por Swift, o empregado da Soakes and Sears, continua a enfrentar todos os perigos em direcção à Sierra Nevada. Em sua perseguição, seguem revoltosos do exército, liderados por um jovem sargento meio enlouquecido. E em perseguição dos revoltosos segue o seu tenente com um contingente de soldados fiéis.
Agora é o tempo de todos enfrentarem o deserto escaldante que clama por violência e sangue fresco!
Em Para Lá da Pista, Yves H. prossegue com a história de Duke, o pistoleiro de poucas falas, ex-homem da lei que deseja fugir à violência que impera no Faroeste, mas que só consegue lhe escapar em sonhos.
Para quem acaba de ler acima o resumo da história e nunca pegou num álbum desta série, tudo pode parecer um pouco confuso. E a isso chama-se falta de continuidade. Mas, construindo este álbum em perfeita sintonia com os anteriores, Yves H. não deixa de criar condições narrativas para que os mais desmemoriados e os novos leitores entrem rapidamente na trama.
A história só aparentemente prossegue lenta. Na realidade, aproxima-se do fim. E Yves H. não pretende deixar pontas soltas. Fazendo-nos viajar do presente ao passado, ele oferece-nos as últimas peças do puzzle. Os derradeiros flashbacks acerca do passado dos protagonistas que nos permitem compreender finalmente toda a sua história. A juventude de Duke, o seu irmão, a sua relação com King. E à medida que a história avança, somos rodeados pelas memórias destes homens, pela violência que ritma os seus passos ao longo dos anos, num mosaico perturbante que conta também a história do Oeste americano.
É notória a percepção que Yves H. tem das capacidades artísticas do seu pai, Hermann. E, nesse sentido, a sua narração é também desenvolvida tendo em conta essas capacidades elevadas à mestria em cenas nocturnas ou de acção com múltiplos protagonistas, como veremos adiante.
Apesar da sua idade respeitável (à beira dos 84 anos), Hermann não mostra qualquer fraqueza e a sua arte executada em cores directas continua poderosa e cativante.
E se não nos desilude em várias das ambiências em que se tornou especialista — como é o caso das nocturnas, nas quais o domínio do preto e dos tons cinzentos é sempre habilmente doseado com pontos de luz débeis ou crepitantes —, nem por isso deixa de nos surpreender com algumas das soluções técnicas que toma.
Aliás, percebe-se bem a sinergia existente entre filho e pai. Yves H. parece fazer tudo em termos narrativos de modo a criar as condições adequadas para que Hermann execute com talento, minúcia e brilhantismo as cenas mais complexas ou desafiantes a nível visual.
De um deserto seco e gretado a uma chuvada batida e persistente, passando por silhuetas recortadas pelo luar, Hermann parece estar a ser testado constantemente, vencendo sempre o desafio.
Nesse sentido, para mim, os dois momentos melhor conseguidos neste álbum são a travessia do deserto branco e o “duelo” debaixo de uma chuva copiosa que nos é apresentado em flashback. Mostrar aqui uma página ou uma vinheta dos dois momentos é diminui-los. Ambos devem ser apreciados na totalidade de modo a que o impacto visual e psicológico seja maior.
Contudo, sempre se pode adiantar alguma coisa em termos de descrição. Desde logo, o mais óbvio é o facto de se tratarem de cenas de opostos: deserto extremo e chuva copiosa. Mas, o verdadeiro desafio está no jogo entre o aparente nada e o aparente tudo; o vazio do deserto e a anarquia de uma violenta carga de água.
Cada cena do deserto é dividida por uma linha horizontal. Na parte de cima, o persistente azul do céu. Na parte de baixo, o branco da terra seca e dura, cozida pelo sol. Que fazer com um chapão de branco e um de azul? Conferir-lhe o negrume da alma humana! E é neste deserto do nada qua assistimos aos momentos mais dramáticos e aos rostos mais sofridos deste álbum.
Já cada cena do “duelo” à chuva é pautada por uma anarquia de pequenos traços, de riscos frenéticos que representam os pingos da chuva. Mas que fazer com 27 vinhetas carregadas de milhares de riscos verticais que parecem torvar a visão? A isso, Hermann responde com uma verdadeira lição de demonstração do que é “arte sequencial”. Imaginem a cena de filme! A chuva cai sem parar. A acção desenrola-se rápida. A chuva cai sem parar. Piscamos os olhos com força e sempre que os voltamos a abrir, parece-nos faltar uns quantos “frames” do filme e a acção avançou para o próximo ponto lógico. E a chuva cai sem parar, até ao 27.º quadradinho. Só vendo!
Dois grandes momentos que se fazem acompanhar ao longo do álbum por uns quantos outros igualmente bem conseguidos, como é a caso da prancha que se segue, na qual a noite parece teimar em atrasar-se e o sol persiste em banhar de dourado o cume das montanhas distantes.
Este é um belo álbum que nos prova que o Western moderno consegue renovar o género, sobretudo através do realismo e da mitigação de clichés.
Com Duke, Hermann e Yves H. dão-nos uma história que, mesmo obedecendo a certos códigos narrativos, mantém-nos marginais. O herói não é herói nem vilão; não há maniqueísmos. Ele só quer seguir o seu caminho e ter um pouco de paz. Mas, para que isso aconteça, tem ainda de travar algumas guerras. A sua necessidade de redenção é tão forte quanto a incapacidade de assumir de uma vez por todas aquilo que é verdadeiramente: uma máquina de matar!
Uma história violenta, crua, intensa, que nos apresenta Hermann e Yves H. num grande momento das suas carreiras. Sabemos o que esperamos deles; não nos desiludem e ainda nos surpreendem. É por isso repetidamente reconfortante a publicação de cada novo álbum de Duke.
No final deste álbum, só restam Duke, Swift e Manolito, que se dirigem para o seu destino final, o rancho Four Horseshoes, onde estão King, Ogden e Peg. Para todos, será o derradeiro combate, o fim tão desejado quanto imprevisível, a ser-nos narrado num sétimo tomo, que se adivinha grandioso.
Por alguma razão, as últimas palavras de Duke neste álbum são: “É a partir de agora que tudo se vai jogar.”
EXTRAS
E de modo a que não tenham razões para duvidar que o grande confronto se aproxima, deixo-vos de seguida as duas primeiras pranchas do sétimo álbum, no qual Hermann trabalha afincadamente.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.
Mais uma recensão crítica magistral.
Mais uma obra prima de Hermann a adquirir. Com urgência.
Obrigado pelas suas amáveis palavras, caro Rui.
Quando o material de leitura é bom…!
Ao contrário do que li algures, este não é um álbum para marcar passo, no qual pouco acontece e a história não avança.
Na verdade, com os vários flashbacks (facilmente identificáveis pela ausência de linha de contorno das vinhetas, com excepção do primeiro) percebemos melhor as motivações dos personagens e como eles estão chegados ao “ponto de rebuçado”.
Acredito que o próximo álbum seja épico e se torne até num daqueles objectos plenos de nostalgia.
Abraço