Análise de Thorgal vol. 37: O Eremita de Skellingar.
A neve afaga, incessante, as águas geladas do Mar do Norte. De mãos acorrentadas atrás das costas, um homem é violentamente pontapeado e cai desamparado na água, quase se afogando. O agressor empurra-o até ao Anel dos Sacrifícios, local onde se agrilhoam os condenados à morte, que desesperam horrorizados enquanto a maré vai subindo lentamente. O único crime deste condenado foi o de amar Aaricia, filha do rei dos Vikings do Norte. Gandalf-o-Louco, o rei, é agora o seu carrasco, e abandona-o impiedosamente à sua má sorte. Fustigado pelo vento gélido e salgado que lhe enlouquece as feridas, o jovem vê ao longe o drakkar que transporta a sua amada desaparecer nas brumas. Resta apenas um estranho silêncio que parece pronunciar um fim mais que certo.
É assim que começa a saga de Thorgal Aegirsson, o jovem condenado. E foi assim que, em 1977, nas páginas da revista Tintin francesa, o mundo teve o primeiro contacto com a dupla genial de Jean Van Hamme e Grzegorz Rosinski (cf. artigo Rosinski, o Eterno Inovador). Ambos encantaram milhões de leitores ao longo de 29 álbuns, desde A Feiticeira Traída até a O Sacrifício, momento em que Van Hamme abandona a série. Rosinski mantém-se no desenho até ao álbum 36 e escolhe então, criteriosamente, o seu sucessor: Fred Vignaux. É a cargo deste que está a arte do álbum 37, O Eremita de Skellingar (cf. previews e apresentação do edição nacional aqui), com argumento de Yann, e que A Seita publica agora no nosso País, numa cuidada edição com direito a um caderno de extras no final.
Preparem-se então para seguir (ou prosseguir) uma das mais extraordinárias sagas do universo da 9.ª Arte. Deixem-se encantar!
Vamos à história!
A embarcação foi muito maltratada pela tempestade e vê-se obrigada a fazer escala na vila de Thorgal. É preciso fazer reparações antes de prosseguirem viagem. A bordo vêm peregrinos que abandonaram a ilha de Nodor, a norte do reino das ilhas do rei Ivarr.
Louve, a filha de Thorgal, passeia-se pelo cais falando distraidamente com Yasmina, o seu macaquinho encantado. Espantada por ver Louve a falar com um macaco, uma criança da embarcação danificada mete conversa com ela. A filha de Thorgal repara na estranha joia que o rapazinho trás ao pescoço, um albatroz azul. Na verdade, o povo dele venera o grande pássaro e o grande momento da sua existência é a peregrinação que efectuam ao ilhéu escarpado de Skellingar. Cada ano, os eleitos participam numa prova sagrada que se realiza no topo da perigosa falésia escarpada. Uma viagem sem regresso para os discípulos participantes.
Entretanto, Thorgal regressa da pesca com o seu filho Jolan. Ambos reparam numa jovem misteriosa que os observa com uma intensidade triste no olhar.
A noite cai. Durante o sono revolto, povoado por pesadelos do seu passado, Thorgal é atacado por uma figura embuçada, apenas conseguindo escapar à morte devido à intervenção da pequena macaca de Louve. Ele e Jolan partem em perseguição do atacante e Thorgal fá-lo cair com uma flecha. Para espanto dos dois, o assassino gravemente ferido é a jovem que os observava no cais. Antes de morrer, a jovem consegue explicar-lhes o porquê do seu ataque… Reconheceu em Thorgal o carrasco da sua família, num tempo em que ele estava sob o encanto de Kriss de Valnor e respondia pelo nome de Shaigan-Sem-Piedade. Não conseguindo vingar-se, antes de dar o último suspiro, a jovem faz Thorgal jurar-lhe que fará tudo para eliminar aquele que persegue o seu povo.
E a aventura começa…
No mundo francófono, cada novo lançamento de um álbum de Thorgal é um verdadeiro acontecimento. E, aparentemente, não interessa se uma aventura é menos conseguida que outra, pois os leitores continuam na ordem das centenas de milhares.
Até à data, foram publicados 39 álbuns da série Thorgal. Mas, em simultâneo com o trigésimo álbum (Moi, Jolan), a Le Lombard criou três séries paralelas que foram evoluindo lado a lado com a original e que com ela se fundiram no álbum 36, o último desenhado por Rosinski… Um acontecimento quase planetário!
Ora, O Eremita de Skellingar é, por isso, o álbum de todas as provas; o álbum do tira-teimas; o álbum da expectativa. Será que Thorgal consegue sobreviver sem Rosinski e Van Hamme? A resposta, digo-vos já, é sim!
Desde logo, o argumentista Yann (já com créditos no álbum anterior e em duas das séries paralelas) deu-se ao trabalho de estudar toda a série e de lhe sentir o pulso, de ver o que a faz mexer. Por outro lado, deu-se também ao trabalho de se documentar em relação aos povos vikings e à mitologia a eles associada.
O resultado é uma narrativa que faz Thorgal voltar às origens, à natureza essencial das suas primeiras aventuras que foram imprescindíveis para criar os alicerces desta série de culto: uma aventura completa; uma prova a superar e um inimigo a abater.
A mitologia nórdica e os deuses vikings desempenham também um papel fundamental no espírito desta aventura sem, no entanto, desempenharem nela um papel directo. E o mesmo se passa com o travo de ficção científica de várias das aventuras da “criança das estrelas”. Pela pena de Yann temos assim um Thorgal mais real que retoma o papel principal que havia perdido nas derradeiras aventuras (inéditas em Portugal). A narrativa constrói-se à sua volta e é uma nova prova que ele vai ter de enfrentar. Thorgal desafia um eremita num ilhéu escarpado recheado de armadilhas. As suas armas são a malícia, a coragem e a sua espada.
Mas a história criada por Yann vai mais fundo e desvela-nos uma época em que os deuses do panteão nórdico ainda tentavam que Aasgard mantivesse a hegemonia face ao Deus das três religiões. E, ao mesmo tempo, lança-nos no mundo obscuro das seitas, neste caso a dos adoradores do Albatroz Azul, e na facilidade com que se manipulam os povos.
Além disso, ao longo da aventura, Yann coloca Thorgal na posição de enfrentar alguns importantes fantasmas do seu passado. E assim, com esta mecânica narrativa bem oleada e funcional, o escritor oferece-nos um álbum acessível a todos os que nunca leram Thorgal e a todos os que sentem saudades dos primeiros álbuns.
E se Yann consegue dar continuidade à série Thorgal em termos narrativos, que dizer de Fred Vignaux e da sua arte? Não é gratuitamente que o exigente Rosinski lhe passa o testemunho, tendo-o testado primeiro em dois álbuns da série spin-off Kriss de Valnor.
O desenho de Vignaux tem, nitidamente, uma veia rosinskiana. Mas ao mesmo tempo que o seu traço segue de perto o de Rosinski, ele consegue conservar as grandes qualidades do seu próprio grafismo que o tornam um desenhador talentoso.
A encenação em cada vinheta é muito bem conseguida e a dinâmica criada acompanha na perfeição a narrativa de Yann, mesmo quando esta é muda. Aliás, as cenas sem diálogo são, talvez, as que nos aproximam mais da essência original da série.
Vignaux está no tom certo. Preciso, poderoso, evocador. Simultaneamente majestático e intimista, complexo e simples. Rosinski não se enganou ao escolhê-lo e dá-nos ainda como brinde a autoria da capa. E as cores de Gaétan Georges estão também em perfeita consonância com os melhores álbuns da série.
Em suma, Yann consegue dar um aspecto muito humano à nova aventura de Thorgal, alternando o espectacular com o introspectivo. Esquecemo-nos um pouco dos deuses que povoaram muitos dos episódios da série e mergulhamos nas tentações, no suspense, numa miríade de sentimentos, mas que estão sempre ao nível de homem e mulher. No fundo, o que cria os alicerces numa série fora dos padrões habituais da Banda Desenhada, já que aqui os personagens envelhecem e, por isso, evoluem, um pouco ao estilo de Buddy Longway de Derib ou do Príncipe Valente de Hal Foster. E Fred Vignaux acompanha Yann talentosamente neste regresso às origens, com personagens bem caracterizados e cenas e ambientes ricos que se gravam na memória, dando um novo fôlego a esta saga das sagas.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.