Amani: Da Construção da Infância

Amani: Da Construção da Infância

… Ou de Marcar a Alma Para Toda a Vida!

Foi uma gota de chuva a bater no vidro da janela da sala.

Foi a lareira a crepitar, lançando sombras bruxuleantes que teimam em brincar às escondidas com os tons alaranjados das labaredas.

Foi o cheiro dos bolos que sempre parecia pairar à tarde na cozinha da Avó.

Foi o serão em família, um sarau diário, divertido, terno e pacato.

Foi o esconder-me por entre os ramos farfalhudos de uma laranjeira.

Foi o Natal, anos após ano, sempre mágico, sempre feliz.

Foi a brincadeira com o meu Irmão e com o meu Primo. Foi o beijo da Avó, o abraço do Avô, o sorriso da velha Tia e a ternura da Mãe.

Foi… foi… foi…!

E foram livros, muitos livros!

Livros “inocentes”, com belas ilustrações, que preparam o futuro e têm a capacidade de marcar a alma para toda a vida.

E é nesta categoria – a de marcar a alma para toda a vida – que entra agora a editora Ala dos Livros. E logo com um peso pesado tão amado pelos leitores portugueses da 9.ª Arte: Miguelanxo Prado. É com ele e com o seu hipopótamo Amani (cf. apresentação do livro e previews aqui) que se inaugura a chancela Ala dos Livros Infantil e é com ele que nos deixámos encantar… Por completo!

Vamos à história!

Nas planícies verdejantes de Makalala, nas margens do rio Pantikora, em plena savana africana, nasceu há uns anos um hipopótamo gordinho de nome Amani.

Amado pela família, vivia em perfeita comunhão com os outros hipopótamos, girafas, zebras, gazelas, borboletas e com os imprescindíveis tchiluandas, os passarinhos que o ajudam na sua higiene diária.

Mas Amani nasceu com um problema. O seu corpo produzia muito menos testosterona do que a produzida pelo corpo dos outros hipopótamos. E todos nós sabemos como a testosterona é importante para a necessária agressividade dos animais mais perigosos de África. Só assim conseguem lutar entre si pelo lugar de dominante e só assim se conseguem defender dos inúmeros perigos que os espreitam na savana.

Ora, Armani, com tão pouca testosterona, era uma cria terna e pacífica que evitava confusões.

Os anos passam e, enquanto os seus companheiros de adolescência se ocupam com ridículas quezílias e a lutar entre si, Amani prefere passar o tempo perto do rio Pantikora a apreciar as coisas boas da vida.

Mas este comportamento diferente do da “grande manada” tem o seu custo. O pai de Amani, sobretudo, está preocupado pois, embora o filho seja enorme, não o vê a impor a sua força e a tornar-se, como todos esperavam, o macho dominante.

Desprezado pelos companheiros, que nem por isso se atreviam a desafiá-lo, e para profunda tristeza da mãe e desilusão do pai, Amani resolve afastar-se um pouco à procura de outro charco, de outra vida…

Miguelanxo Prado é uma das muitas “coisas” boas que a Galiza tem para nos oferecer. Autor muito apreciado em Portugal (e em variadíssimos outros países), com quase vinte obras publicadas no nosso País, o registo de Prado varia entre o policial (O Manancial da Noite), o surrealismo, a crónica/crítica social e o intimismo, sempre com qualidades narrativas e artísticas de eleição, de que são prova os inúmeros prémios que já recebeu e onde se destacam os L’Alph-art e o Eisner.

E com Amani, ainda não é desta que nos desilude (não que estejamos à espera disso!). Na verdade, Prado entra aqui no difícil mundo da literatura infantil. Difícil, pois é um mundo onde tudo parece fácil, um mundo que leva tantos autores ao engano. Não basta escrever umas frases, alinhar umas ideias, envolver tudo numa qualquer desgastada “moral da história” com tiradas pseudo-filosóficas ao melhor nível das que povoam o facebook e, por fim, embrulhar tudo com lindas imagens. Livros com estas características há muitos!

Mas Prado é Prado! E oferece-nos aqui a possibilidade de nos deliciarmos, mais uma vez, com a sua sensibilidade galega, tanto ao nível da escrita como da ilustração. E num ambiente que não é propriamente o que habitualmente vemos nos seus livros: África. Mas isso é só um pretexto!

Na verdade, este livro terá, pelo menos, duas leituras possíveis: a feita pelas crianças e a realizada pelos adultos. E ainda todas as outras que cada um, consoante a sua personalidade, possa fazer.

E é aqui, na minha opinião, que reside a chave da questão… Na personalidade de cada um. A infância é sempre um factor decisivo na construção da personalidade. Independentemente de outros factores, uma infância monótona, que se cinja aos videojogos ou a uma qualquer obsessão monotemática terá sempre como resultado adultos menos inspirados.

Com Amani não se corre esse risco!

Seja por uma leitura mais infantil, do hipopótamo diferente, desprezado pelos outros, mas que consegue vencer. Seja por uma leitura mais adulta, da qual poderemos retirar uma metáfora acerca da necessidade de paz, ou do vencer pela superação, ou da arma que é a elevada inteligência emocional, ou de encontrarmos o nosso lugar num mundo harmonioso apesar daquilo que nos faz ser diferentes uns dos outros. Seja por que razão for, Amani é daqueles livros que podem marcar a alma de futuros adultos e criar, desde já, as ternas memórias de porvires menos bons que são superados, também, por estas leituras que fizemos em crianças.

Por isso, a todos os que têm filhos pequenos, sobrinhos, netos e sobrinhos-netos, aos educadores e às babás, e aos contadores de histórias em geral, aconselho vivamente a leitura de Amani. De preferência em voz alta, pausadamente, com uma boa dicção, com emoção cantada e um brilho nos olhos. Com um pouco de sorte e de engenho, conseguirão transmitir aos mais pequenos um bafejo iluminado, uma memória indelével, uma infância rica, plena de curiosidade intelectual. E a si próprio, caro leitor adulto, um momento estranhamente reconfortante e feliz, no qual a sua alma, resgatada de qualquer agrura, regressará ternamente à infância.

Depois, poderão pôr as culpas em Amani e Miguelanxo Prado.

Se este livro existisse há mais anos, tê-lo-ia lido aos meus filhos, à beira da cama, alumiado por uma luz ténue. Seria mais uma boa memória a juntar-se a O Estranho Mundo de Jack, de Tim Burton ou a O Ratinho Marinheiro de Luísa Ducla Soares e Maria João Lopes.

Se “os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”, como escreveu Leonardo da Vinci, então os livros são o seu alimento. E Amani um verdadeiro banquete!

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