O Mergulho: Mergulhar na Vida!

O Mergulho: Mergulhar na Vida!

Análise de O Mergulho

Vão longe, os tempos da Imaginação!

E, no entanto, quando ela existe, sonha-se, inventa-se, cria-se, e o mundo progride.

Vão longe, os tempos da Imaginação!

Mas quando ela surge, brotando em jorros de um solo fértil, é difícil ignorá-la. São os tempos de um Tolkien, de uma Rowling, de um Disney e de um punhado de outros que nos colocam na situação delirante de esquecermos a nossa idade, seja ela qual for.

E, apesar de tudo, cada vez mais compartimentamos o saber e limitamos a possibilidade de todos tentarmos ser aquilo a que se pode designar de “Homens do Renascimento”.

Na literatura, por exemplo, existe a “infantil”, a “juvenil”, a dos “jovens adultos”, a para “adultos” e, quem sabe, até a “geriátrica”. Ora, se O Mergulho – o álbum de Séverine Vidal e de Victor L. Pinel com o qual a Ala dos Livros (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui) acaba de enriquecer o panorama da 9.ª Arte em Portugal – tem como protagonistas um grupo de velhos, nem por isso é de leitura obrigatória apenas para leitores da Terceira Idade. Antes pelo contrário! Portanto, crianças, adolescentes, jovens adultos, adultos e idosos, esqueçam as compartimentações, regressem aos tempos da Imaginação e… mergulhem!

Vamos à história!

Yvonne Lhermite é uma velha senhora de oitenta anos. Toda a sua vida, viveu-a na mesma casa na companhia do seu amado marido. Aos vinte anos, foi lá que se casou. Aos trinta, já a casa tinha visto nascer os seus quatro filhos. Aos quarenta, de novo floresceu ao lado do marido atrevido. E os quarenta anos seguintes correram doces, envelhecendo de mãos dadas e felizes.

Mas no ano das suas oitenta primaveras, Yvonne é afrontada pela Grande Ceifeira que lhe rouba o companheiro de uma vida. Sozinha, sem vontade de viver ou de ser feliz, a sua única companhia é Belloche, a velha cadela a quem acaba por oferecer a eutanásia em troca do sofrimento.

É o desapego final, o mergulho nos últimos anos ou instantes de vida. Há que terminar com tudo, afastar-se dos fantasmas que habitam aquele que foi outrora o seu porto de abrigo, não permitir-se ser um fardo para filhos e netos, vender o seu bem mais precioso e rodar, uma última vez, a chave da porta da entrada.

Yvonne deixa para trás uma vida e decide dar entrada num lar para a Terceira Idade. Mas as Mimosas (é esse o seu nome), desagradam-lhe desde o início. Aquele não é o seu quotidiano nem a sua rotina; a directora trata-a com um paternalismo desadequado; odeia a colcha da sua cama, o papel de parede e a cor do seu quarto, o ploc, ploc da torneira a pingar.

E, no entanto, a directora é boa pessoa, o pessoal é atencioso e simpático, e os amigos e família visitam-na com regularidade, sobretudo o neto Tom, o seu preferido.

Apesar disso, Yvonne sente que se deve manter fiel a si própria e vai insuflar o vento da mudança na ERPI (acrónimo da designação bacocamente eufemística de Estrutura Residencial Para Idosos). Fazendo novos amigos, tentando ser de novo feliz, levando o dia a dia com humor, espicaçando, desafiando e, talvez, até amando, ela vai reinventar-se e, simplesmente, não permitir que os anos que ainda tem passem em branco, como um mergulho no nada.

E mesmo estando rodeada de pessoas em declínio, mesmo que a sua própria memória esteja a falhar, Yvonne está pronta para viver uma nova juventude…

Em O Mergulho, Séverine Vidal (argumento) e Victor L. Pinel (desenho) oferecem-nos uma história com um tema cada vez mais actual – a velhice e a entrada em lares para a Terceira Idade (chamem-se eles isso mesmo ou ERPIs ou outra coisa qualquer), onde os “nossos” velhos vivem cada vez mais anos, graças ao aumento da esperança de vida.

O tema é difícil e pode ser tão triste quanto árido. Mas Vidal consegue abordá-lo com ternura e muito humor. A narrativa é sempre intimista e joga muito com a apresentação do dia a dia nas Mimosas através de momentos vulgares em colectividade ou na solidão dos confins do cérebro. As refeições, os ateliers recreativos, os pequenos episódios do passado, a coscuvilhice, as derradeiras histórias de amor, mas também o inevitável declínio de todos os ocupantes do Lar.

O segredo da narrativa de Vidal pode resumir-se numa palavra: Esperança. A vida assim não tem de ser necessariamente triste, e a reviravolta total na vida de uma mulher — que de repente se encontra só após muitos anos de uma vivência em comum — pode significar um recomeço, um reencontro consigo própria.

E numa época em que os lares para a Terceira Idade são-nos apresentados quase sempre como uma triste fatalidade, é refrescante descobrir nesta obra personagens marcados por toda uma vida, mas ainda animados pelo desejo de encontrar a felicidade.

A estrutura da história faz-me lembrar um pouco uma mistura entre os filmes “Voando Sobre Um Ninho de Cucos” e “A Casa do Lago”. É a loucura com ternura. A paixão de Yvonne e o seu espírito rebelde permitem-lhe tornear algumas das regras estritas do Lar. E com isso ela faz mergulhar os residentes numa onda de esperança. Esperança na vida e no viver, pois só é velho, verdadeiramente velho, quem quer. Diz o adágio que “a idade não perdoa” e isso é um facto, mas sobretudo em termos físicos. Para aqueles que têm capacidades de adaptação, a velhice, suponho eu, pode trazer-nos tantos desafios como a juventude. E se esta se mantiver no nosso cérebro, então a vida valerá a pena ser vivida até ao último milésimo de segundo. Afinal, todos estamos aprisionados num invólucro decadente, mas por dentro somos aquilo em que o acumular dos anos nos transformou. Continuamos a querer beber café, fumar um cigarro, dançar, ir ao cinema, viajar, sentir a brisa no rosto enquanto vemos um pôr-do-sol, ansiar por ternura ou desejar ardentemente um momento de sexo. A maior parte das vezes, o problema é do nosso invólucro e não da nossa cabeça, excepto para aqueles que não conseguem passar um dia sem declamar “estou velho!”.

A narrativa tocante e viva de Vidal completa-se na perfeição pelas doces ilustrações de Victor Pinel. As personagens idosas são desenhadas com verdadeira dedicação e um realismo que não escamoteia os declínios traçados por pregas e rugas, olhares perdidos no espaço em busca de memórias fugidias, ou líbidos que continuam activas e sem pudores. E mesmo quando, aqui e ali, a narrativa exige o nu dos corpos, este é desprovido de qualquer voyeurismo.

Pinel consegue transformar as páginas sem diálogo em extraordinários momentos de refexão sobre a maneira como nos apercebemos da velhice quando já lá chegámos e sobre as condições de vida dos nossos idosos.

Não são desenhados fogos-de-artifício nem explosões, cenas de sexo ardente ou discussões de faca na liga. As sequências narrativas em imagens são tratadas com serenidade e eficácia e com um pragmatismo que, de maneira aparentemente fácil, nos faz chegar sentimentos e empatia.

Uma história tocante, que nos faz passar facilmente do sorriso às lágrimas, O Mergulho oferece-nos um quadro da nossa civilização repleto de humanidade, e que tem como fio conductor o fim da existência e como é de aproveitar o resto que temos para viver, por mais pouco que seja.

Neste sentido, O Mergulho é uma lição a tirar por todas as idades, sem compartimentações pois, afinal, todos alcançaremos a mesma meta inevitável. E só depende de nós alcançá-la com um espírito arfante mas vencedor ou um espírito arfante e derrotista.

Podemos mergulhar no nada ou podemos mergulhar na vida. A opção é de cada um. Mas deixem que vos diga… a vida é para ser vivida!

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