
Análise de Os Choco-Boys, de Ralf König
O Faroeste é um território duro e selvagem onde só cowboys, índios e colonos mais ou menos desprovidos de um qualquer sentido de realidade se arriscam a penetrar. As maiores intempéries, cascavéis e escorpiões, bandidos e vilões da maior espécie, ora frio ora calor mortífero, tudo isto são algumas das melhores coisas que o Oeste Selvagem tem para oferecer. É um território rude, feito para homens viris, machos incontestáveis, capazes de suportar as maiores agruras e mantendo sempre uma barba rija.
Não há tempo nem disposição para o que é diferente. E que o diga Lucky Luke, que por ser o homem de gatilho mais rápido e certeiro do mundo, tem sempre um bando de desesperados no seu encalce à procura de o abater e alcançar a fama.
E agora juntam-se a ele mais dois cowboys “diferentes” numa nova aventura que A Seita (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui) acrescenta à colecção na qual conhecidos desenhadores nos oferecem a sua visão particular do “homem que dispara mais rápido que a sua própria sombra”.
Este é já o quinto volume (ver, por exemplo, o artigo Três Mulheres, Um Cigarro e a Imortalidade), agora da autoria do alemão Ralf König, conhecido pelos seus álbuns de ambiente gay, onde a homossexualidade é tratada sempre num tom humorístico. E são estes os dois tons que pontuam a obra, despojada, hilariante, ignorando a chatice do politicamente correcto, conseguindo agradar a heterossexuais, a homossexuais e, sobretudo, a todos os que gostam de uma boa aventura de Lucky Luke.

Vamos à história!
Bud Willis e Terrence McQueen são um casal de velhos cowboys que vivem numa modesta casa de madeira isolada nos confins de uma qualquer pradaria. Um dia recebem uma visita inesperada… alguém que os indaga sobre Lucky Luke. Entusiasmados com a pergunta, felizes com a viagem pela avenida da memória que se adivinha, Bud e Terrence iniciam o relato das suas aventuras de juventude, na época em que conheceram Lucky Luke, o famoso cowboy solitário, há mais de cinquenta anos.

Tudo começou na pequena cidade de Straight Gulch. Bud Willis, sentado descontraidamente no alpendre do centro de emprego, espera que o contratem para conduzir uma manada de vacas pelo vale. De repente, apercebe-se que se aproxima um cowboy solitário, montado no seu cavalo branco. Em retrospectiva, Lucky Luke pareceu-lhe menos impressionante que nas histórias (invariavelmente é o que acontece quando conhecemos uma lenda viva).

Este, desmonta mesmo em frente do centro de emprego. O recrutador, ignorando Bud, manda Lucky Luke entrar. Mal podem acreditar quando se apercebem que estão perante o homem que atira mais rápido que a sua própria sombra. Luke é contratado de imediato. O trabalho é conduzir para um vale verdejante uma pequena manada de vacas leiteiras suíças, propriedade do Sr. Sprüngli que pretende com o leite delas produzir os seus famosos chocolates de luxo.
Entretanto, Bud interrompe delicadamente a contratação de Lucky Luke e é admoestado e mandado embora pelo Sr. Hicks, o contratador. Intrigado, Lucky Luke pergunta o que se passa com Bud Willis. Hicks explica-lhe que, depois de Bud e um amigo terem ido guardar ovelhas para Bareback Mountain, correram rumores pelo lugarejo. Parece que andaram a “abafar a palhinha em Bareback”. Em resumo, é um larilas!
Ao ver como todos tratam Bud, e depois de se ver forçado a impor a lei da bala, Lucky Luke põe como condição para aceitar o trabalho a ajuda de Bud.
Entretanto, o comboio que transporta as vacas, acaba de chegar. A escoltá-las vem a rainha do vernáculo – Calamity Jane. A manada de estranhas leiteiras desembarca. Para espanto de todos, a sua cor é malva, violeta ou lilás, consoante os olhos de quem as observe. E a aventura está prestes a começar…

A premissa desta série é colocar à disposição de criadores contemporâneos o direito de, no espaço de um álbum, se apropriarem do herói como se fosse seu. Ora, fazê-lo com o alemão Ralf König é, no mínimo, arriscado. Não porque o seu trabalho não tenha qualidade, mas porque um dos seus temas dilectos é a homossexualidade. E se este tema está, cada vez mais, banalizado na banda desenhada franco-belga e mesmo na norte-americana, o mesmo não se passa no universo rude e viril criado por Morris há 76 anos.
Embora não abdique do tema, criando um western humorístico de tendência ultra gay, König é um conhecedor profundo das aventuras de Lucky Luke. O seu cunho pessoal atravessa toda a aventura e marca os personagens criados para este álbum específico. Quanto a Lucky Luke e toda a sua entourage, mantêm as tendências pelas quais sempre foram conhecidos.
E se König não faz do nosso cowboy solitário um homossexual, no entanto toda a aventura deste álbum consiste em permitir uma ligação amorosa entre dois homens num meio hostil. O matulão Bud e o pequeno e peludo Terrence são na verdade os protagonistas, coadjuvados por um Lucky Luke que, apesar de interventivo, quer é estar de férias.

Em paralelo, todos os códigos da série são convocados e o universo de Morris é preservado. O herói, o seu cavalo Jolly Jumper, o comanditário da missão, as brigas, os cowboys, os índios, Calamity Jane e até os irmãos Dalton. O caminho-de-ferro, as bucólicas pradarias verdejantes, conversas à volta da fogueira, um duelo, muito humor e até o habitual posfácio com a fotografia de época. Nenhum dos principais elementos constitutivos das aventuras de Lucky Luke está em falta.

Tendo como pano de fundo Brokeback Mountain, o filme de Ang Lee de 2005, König junta-lhe umas trufas de chocolate da Sprüngli (a famosa confeitaria de luxo suíça criada em 1836), alusões sexuais mais ou menos disfarçadas que comentarei adiante, e personagens humildes, mas confiantes e de confiança.
Lucky Luke, também ele confiante (como sempre), quase que se limita a desfrutar do tempo que passa, e deixa fugir uma única confissão. Interrogado acerca da sua vida afectiva, ele recorda apenas uma velha história de amor com uma certa Joannie Molson (personagem da série spin-off Kid Lucky) e acaba concluindo: “Tenho o Jolly Jumper e o pôr-do-sol. Isso chega-me.” A integridade do cowboy solitário é assim respeitada.
Ralf König utiliza o humor a vários níveis e fá-lo de maneira eficaz.
Quer seja na sua forma mais básica através de alusões sexuais nos nomes de personagens e lugares. E assim temos desde logo o lugarejo de Straight Gulch, sendo straight o vocábulo inglês que serve também para designar os heterossexuais, os “certinhos”. Ou Bareback Mountain, não só trocadilho com o título do filme Brokeback Mountain, mas também alusão à prática de fazer sexo anal sem preservativo. Ou ainda o nome da índia Sitting Butch (sendo “butch” um termo usado na cultura lésbica para designar uma mulher com maneirismos masculinos).
Quer seja pelo humor de circunstância. Sendo um dos momentos altos o altamente improvável strip-tease de Lucky Luke. Quer seja ainda pelo humor mais refinado, presente, por exemplo, na cena onde o analfabeto e bronco do Joe Dalton entre numa livraria (o que já de si daria para se esboçar um sorriso) e, ao pedir um álbum de BD de Lucky Luke, leva com uma prédica da livreira acerca do facto da Banda Desenhada ser literatura troglodita e que a alta literatura não comporta fantasias impossíveis como “romances gráficos”. O facto é que o humor se encontra em muito boas doses em Os Choco-Boys.

Em termos gráficos, König realiza a fusão perfeita entre o seu próprio traço (com aquela abordagem cubista de certos rostos) e o de Morris. Reconhecemos de imediato todos os personagens do criador original e, simultaneamente, os particularismos da arte de König.

E até na aplicação da cor, o autor alemão tem o cuidado de manter a sua paleta ao mesmo tempo que utiliza criteriosamente a técnica da bicromia selecionada tão cara a Morris.


Em suma, uma boa aventura de Lucky Luke, hilariante, que respeita os cânones, mas subverte os contornos da típica história do nosso “pobre cowboy solitário”. Uma bela homenagem que Ralf König faz aqui a Morris e ao seu herói, repleta de referências e de provocações feitas de igual modo com ternura e inteligência. E se a aventura não acaba propriamente com Lucky Luke a cavalgar em direcção ao pôr-do-sol, cantando “I’m a poor lonesome cowboy” (como é habitual), nem por isso deixamos de ter no derradeiro quadradinho um agradável final de tarde… numa cabana perdida na pradaria.


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.