Blacksad: Ao som de um saxofone solitário!

Blacksad: Ao som de um saxofone solitário!

Análise de Blacksad Vol. 1 – Algures Entre as Sombras

Bem sei que pode parecer um cliché, mas se a série Blacksad tivesse uma banda sonora, o instrumento principal seria um saxofone.

No ano 2000, Juan Diaz Canales (argumento) e Juanjo Guarnido (desenho), encantavam os apreciadores da 9.ª Arte com o primeiro volume de Blacksad que a Ala dos Livros acaba de reeditar numa versão bem mais luxuosa que a antiga, com capa com verniz de selecção, lombada em tela e 25 páginas de extras com o título “A História das Aguarelas”, após ter lançado o sexto livro da série (ver artigo “Blacksad, o noir iluminado”).

Na boa tradição do policial noir norte-americano, com a junção perfeita do detective Philip Marlowe, criado pelo escritor Raymond Chandler, com o mesmo personagem interpretado no cinema pela lenda de Hollywood Humphrey Bogart, e com um domínio técnico de excelência do antropomorfismo por parte do desenhador Juanjo Guarnido, Blacksad é um gato detective alto, elegante, que traja quase sempre fato e usa a clássica gabardine, calcorreando as ruas de Nova Iorque dos anos de 1950 na tentativa de solucionar os crimes mais complicados.

No estilo hard-boiled do policial realista, na série ressalta, no entanto, o género noir que é soberbamente alcançado tanto pela narrativa de Canales como pelas ambiências criadas por Guarnido. Acresce que todos os argumentos carregam uma mensagem social e os temas tratados são adultos.

Mas voltemos ao saxofone. Imaginem uma melodia melancólica, abram a primeira página e…

Vamos à história!

Em frente da mansão está parado um carro da polícia e o carro do detective John Blacksad. Ao som do saxofone, entramos no seu pensamento: “Há manhãs em que nos custa mais digerir o pequeno-almoço… sobretudo se estivermos diante do cadáver de um amor antigo…”.

Lá dentro, o corpo da actriz de cinema Natalia Wilford, envolto num negligé transparente, jaz inerte na cama. Um fio de sangue corre-lhe da testa, do sítio onde a bala entrou. Smirnov, o seco chefe da polícia, fez Blacksad vir ao local do crime. Sendo Natalia uma antiga amante do detective, Smirnov pensou que ele poderia trazer alguma luz a um caso sobre o qual a polícia não tinha qualquer pista. Mas o detective privado não acrescenta nada de novo, pois não conservara qualquer contacto com a vítima.

Mas, de regresso ao seu escritório, afloram à sua mente as melhores e as piores memórias que guarda de Natalia. E se a época em que estiveram juntos foi a mais feliz da sua vida, foi também a que lhe turvou a mente e que lhe mostrou que o amor perfeito não existe.

Agora, de espírito carregado, por entre um cigarro e um pensamento, Blacksad decide enveredar pela sua própria investigação e promete fazer pagar bem caro o sacana que tirou a vida ao seu antigo amor.

Ao som do saxofone…

Como já acima se disse, Juan Diaz Canales e Juanjo Guarnido conseguem alcançar o sucesso imediato com este primeiro volume da série Blacksad. É o álbum que dá o tom à série, na mais pura tradição do policial noir americano. Todos os ingredientes para criarem uma atmosfera sombria e original estão lá, preservando os códigos imutáveis do género: um herói solitário, implacável, incorruptível, com um conjunto de valores morais elevados, sempre pronto a enfrentar os seus inimigos e que vai ao fundo das coisas, mesmo que para isso tenha de contornar um pouco (ou muito!) a lei. A cidade, como personagem discreta e omnipresente, que tanto é capaz de engolir os protagonistas como de os regurgitar para a ribalta. Os criminosos particularmente sórdidos, capazes de matar tão facilmente homens como mulheres, jovens e idosos; vis na hierarquia do crime, não conhecem escrúpulos, independentemente de serem intermediários ou de estarem no topo.

O ambiente geral remete-nos facilmente para o clássico do cinema de 1946, À Beira do Abismo (The Big Sleep), onde Humphrey Bogart interpreta o detective Marlowe.

O argumento de Canales está perfeitamente orquestrado. Somos levados por caminhos dúbios através de uma investigação que só dá resultados no derradeiro desenlace. A narrativa é fluída e modelada, alternando entre momentos de acção, de reflexão e de investigação pura. E até as falas em voz off são trabalhadas à moda do policial noir americano, conseguindo ser de igual modo duras e secas e filosóficas e poéticas, conseguindo gerar a empatia do leitor para com o protagonista.

Trabalho, com certeza, dividido entre argumentista e desenhador, é o da escolha inteligente de personagens. Ou melhor, da escolha do animal correspondente a cada personagem. E os autores fazem-no tendo em conta as suas características e os seus comportamentos, orientando-os em função da escolha do animal. Assim, por exemplo, Smirnov, o chefe da polícia, é um pastor alemão; o antigo guarda-costas de Natalia e actual pugilista é um gorila, o assassino a soldo, implacável e fugudio é um réptil; o chibo e pão mandado é um rato; o ardiloso detective é um gato; e o misterioso personagem de olhos salientes, a mente criminosa por trás de tudo é um… mistério para aqueles que ainda não leram a obra!

O trabalho de Guarnido é, neste particular e em todo o álbum, absolutamente deslumbrante, ajudando-o a torná-lo uma obra-prima da 9.ª Arte. Guarnido desenha personagens extremamente expressivos, não deixando margem para a interpretação de sentimentos – o leitor está lá, no meio da acção e sabe o que cada um está a sentir. O antropomorfismo é perfeito, e o desenhador consegue fundir com brilhantismo a postura característica de cada animal com a função humana que desempenha.

Mas Guarnido não é só exímio a desenhar personagens. Na verdade, é igualmente bom nos décors, atribuindo-lhes profundidade, carregando-os de inúmeros detalhes que lhes dão credibilidade, e utilizando frequentemente as perspectivas e planos mais complexos de desenhar, como o plongée que se segue.

Não ficando por aqui, é igualmente eficaz nas cenas de acção, curtas ou longas, mas com um verdadeiro sentido de ritmo crescendo.

A divisão de cada prancha é inteligentemente narrativa e também muito rítmica, dando-nos, a miúde, uma sensação geral de vertigem e de mistério.

E depois, depois há aquilo que tão bem caracteriza a genialidade de Guarnido e que me agrada particularmente: o seu envolvente trabalho de composição de cenas. Sobretudo quando o cenário é complexo e detalhado, e há nele uma miríade de personagens diversificados, de diversas origens, cada um a desempenhar a sua própria cena. Neste álbum, uma das minhas cenas favoritas do género é a que se passa no Chyper Club, onde um orangotango melancólico toca a sua guitarra e vai cantando enquanto uns lhe dão atenção, outros discutem, namoriscam, riem alarvemente ou, levados pelos vapores do álcool, dormitam no meio da algazarra.

Por fim, o trabalho de colorização, que também pertence a Guarnido, é igualmente inteligente e dá o tom noir a toda a obra. Na maior parte do tempo, somos brindados com sépias e acinzentados repletos de sombras. As excepções são o flashback de três páginas de cores vivas, onde ficamos a conhecer o caso de amor de John Blacksad com Natalia Wilford, e a cena de confronto final na qual a alma negra da história é confrontada pelo detective privado num cenário onde, paradoxalmente, domina o branco.

Temos assim uma história de certo modo clássica, que segue os códigos próprios do policial noir americano, mas elevando-o à mais alta fasquia, tanto pela narrativa de excelência como pela qualidade gráfica excepcional.

O universo criado é forte e pungente, o protagonista é forte e carismático, o cenário é forte, com uma crítica social e adulta destilada (o poder a que o dinheiro dá acesso e que tantas vezes leva à corrupção, à falta de humildade e ao despotismo ignorante).

E para quem hesite em ler este Algures Entre as Sombras, o prefácio do consagrado Régis Loisel (ver, por exemplo, os artigos Quando o centro do mundo é uma loja de aldeia! e O perturbador e fascinante Peter Pan!) não deixa margem para dúvidas, tecendo aos autores os mais rasgados elogios.

Agora, avancemos para a última página da história.

Depois de uma última conversa com Smirnov, John Blacksad sai da esquadra da polícia para o bulício da rua. O detective levanta a gola da gabardine para se proteger do vento outonal. E perdemo-lo de vista, misturado com os milhares de almas que povoam a avenida nova-iorquina. Tudo ao som das notas finais de um saxofone solitário.

2 comentários em “Blacksad: Ao som de um saxofone solitário!

  1. Não podia estar mais de acordo com esta excelente análise. A série Blacksad é uma obra prima, que para quem, que como eu, cresceu a ver policiais negros na televisão. Entende-se imediatamente a linguagem e a atmosfera de “Film Noir “nesta banda desenhada. É fácil imaginar as vozes de Bogart, Baccal ou mesmo Peter Lorre nas personagens.

  2. Obrigado pelo comentário, caro Paulo Henriques.
    De facto, a atmosfera de “Film Noir” é particularmente bem conseguida
    Mal posso esperar agora pelas novas edições “melhoradas” de Blacksad a serem publicadas pela Ala dos Livros.
    Abraço

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