Análise de Undertaker vol. 3 – O Monstro de Sutter Camp
Ah! As extensas pradarias verdejantes; o imenso céu azul entrecortado por nuvens alvas; enormes manadas de vacas conduzidas por cowboys armados de laço e de revólver.
Em suma, um western típico… tudo o que este não é!
Com O Monstro de Sutter Camp, que a Ala dos Livros acaba de publicar (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui), inicia-se o segundo díptico da série Undertaker.
E se no primeiro arco de história já tínhamos sido surpreendidos tanto pelo argumento como pela arte (ver artigo O Bom, o Abutre e um Caixão), neste terceiro volume Xavier Dorison (argumento) e Ralph Meyer (desenho) conseguem manter a fasquia bem elevada.
Mais uma vez, a série continua a respeitar os principais cânones do género Western, mas com um toque de originalidade que, desta feita, vai buscar ao policial (um assassino em série) e mesmo ao terror a sua fonte de rejuvenescimento.
Continuemos então a seguir as aventuras improváveis de Jonas Crow, o cangalheiro, e das suas companheiras de viagem Rose Prairie, uma governanta inglesa, e Madame Lin, uma cozinheira chinesa, a que se junta Jed, um pacato e taciturno abutre.
Vamos à história!
O negrume profundo dos confins da floresta densa é apenas quebrado por um pequeno candeeiro a petróleo que alumia o interior da carroça. Lá dentro, uma voz sem rosto parece deliciar-se aterrorizando com uma incrível delicadeza uma pobre alma torturada. Algo se prepara. Os objectos de tortura estão em cima da mesa. A voz sem rosto elogia os benefícios do clorofórmio na supressão da dor para logo em seguida lhe criticar os prejuízos para o coração.
“E para ser sincero, se quiser gratificar-me com alguns gritos, não me oponho. Francamente, para juntar o útil ao agradável, é até o que prefiro. Portanto, faça favor… dê-me esse prazer.” E um grito lancinante rasga as trevas nocturnas.
Puxada por uma parelha de cavalos, a carroça funerária segue lentamente pelo terreno acidentado e poeirento de uma zona montanhosa algures na Califórnia. Ao encontro do próximo cliente, Jonas Crow atura, com indolência, o sermão que lhe é dado pela sua recente associada, Rose Prairie. Na verdade, há seis semanas que trabalham juntos e, desde então, Jonas tem afugentado todos os clientes. A situação financeira é das piores. Rose tenta incutir-lhe regras de boas maneiras e delicadeza no trato com os clientes. E Lin, a terceira sócia, ameaça cozinhar Jed, o abutre de estimação de Crow se não entrar dinheiro na empresa.
Chegados à morada da defunta, rapidamente Rose e Lin tomam a dianteira das conversações. O dono da casa quer que se apressem a preparar o cadáver da sogra. É que, para além de começar a cheirar mal, a nata da região comparecerá ao final daquele mesmo dia para prestar um último tributo à velha senhora.
Tudo corre bem até ao momento da cerimónia, quando o marido da defunta aparece finalmente. O homem, trajando um uniforme militar, parece estar completamente embriagado. Tomado por uma espécie de ira delirante, começa a tratar Jonas Crow pelo nome de Strikland e depois, cada vez mais enervado, grita-lhe que o monstro de Sutter Camp está vivo e continua não só a matar como a praticar os actos mais bárbaros.
Perante a confusão gerada, Jonas, Rose e Lin acabam por ser expulsos da propriedade sem ganhar o que quer que seja. Mas para Jonas Crow o assunto não está terminado. Ele tem de saber mais acerca deste pretenso monstro, vestígio do seu passado no exército…
Logo com o primeiro álbum, a série Undertaker conseguiu cativar leitores e críticos, graças às capacidades narrativas de Xavier Dorison. Os argumentos são bem elaborados, os diálogos assertivos e o autor consegue o equilíbrio com uma dose certa de acção, humor e violência. A juntar a isto, temos também a mistura ideal entre os cânones do Western clássico e a inovação.
O mesmo se passa com esta primeira parte do segundo díptico de Undertaker. Ou seja, Dorison respeita os códigos do género, desconstrói-os de certa forma, e refá-los para nos surpreender, neste caso, com um Western/policial/conto de terror, de forma criativa e talentosa.
A história corre célere. Enquanto Rose espera que a sociedade com Jonas Crow e Lin prospere, o passado militar do gato-pingado vem contrariar os seus planos.
Na verdade, um assassino em série com quem Jonas se cruzou durante a Guerra da Secessão, e que ele julgava morto, continua vivo e deve ser apanhado a todo o custo. Travar o “monstro” parece ser muito importante para o nosso anti-herói. Habilmente, Xavier Dorison doseia o mistério em doses homeopáticas e não deixa o leitor mais que entrever pequenos fragmentos da trama total nesta primeira parte da história.
De permeio, ficamos a conhecer um pouco mais do passado de Jonas Crow, é-nos apresentado um vilão tenebroso e, igualmente, duas mulheres determinadas, senhoras do seu destino.
O argumentista oferece-nos uma narrativa cativante, sem tempos mortos, na qual os acontecimentos se encadeiam a um ritmo credível e empolgante.
Mas se o sucesso de Undertaker se deve às capacidades narrativas de Dorison, também é verdade que de igual modo o deve à arte de Ralph Meyer.
Neste terceiro volume, o desenhador oferece-nos muito pouca luz. Aliás, quase tudo é sombrio, tanto no sentido real como no sentido figurado. A maior parte das cenas desenrola-se à noite, na floresta ou à luz trémula de velas, fogueiras ou candeeiros a petróleo. E o mote das trevas, das mentes humanas obscuras e sinistras, é-nos dado logo na primeira prancha que a seguir se reproduz.
Os grandes espaços a céu aberto tão característicos do Western e genialmente recriados nos dois primeiros álbuns são aqui quase inexistentes. A primazia vai para as trevas e para o claustrofóbico, preparando-nos o espírito para as maiores atrocidades.
Apesar disso, Meyer, quando a narrativa o pede, brinda-nos com paisagens de cortar a respiração, lançando uma luz apaziguadora sobre a narrativa.
O desenhador oferece-nos um Western de grande classe, no qual a beleza dos décors ombreia com o dinamismo da acção e com o carisma e expressividade dos personagens.
Se Meyer já nos tinha convencido com Jonas, Rose e Lin, agora volta a premiar-nos com personagens com igual carisma. Desde logo, o Coronel Charley Warwick, que se lança na pista do “monstro” com Jonas, mas também (e sobretudo) esse vilão de nome Jeronimus Quint, uma espécie de fusão entre o Professor Moriarty de Sherlock Holmes e o Negan de Walking Dead. Tão inteligente quanto sádico, este último é daqueles personagens que o leitor tem prazer em odiar.
O traço de Ralph Meyer, com uma saudável inspiração no de Giraud/Moebius, mantém a sua elegância, precisão e o domínio das sombras. A divisão das pranchas é inteligente e conforme ao ritmo narrativo. As perspectivas e os planos são bem pensados e executados. As cenas de acção são empolgantes e com desfechos maioritariamente inesperados. Tudo concorre para dar credibilidade à história e não termos de fazer uma pausa por sentirmos que há algo menos conseguido.
Nos dois primeiros volumes da série descobrimos que Jonas Crow também era conhecido por “o Carrasco de Skullhill”. Agora sabemos que no seu universo habita o “monstro de Sutter Camp”.
Se nos dois primeiros álbuns, como disse no artigo acima citado, “chegamos a sentir o cheiro da pólvora a emanar do cano de um revólver Colt e a brisa suave que sopra ao entardecer por entre os grandes desfiladeiros”, agora o cheiro de caruma orvalhada no chão da floresta enche-nos as narinas, bem como o cheiro férreo do sangue de vítimas inocentes.
É que à solta anda um médico vigarista, um manipulador psicopata que há muito esqueceu o seu juramento de Hipócrates. Um monstro que actua num Oeste ainda mais selvagem, aproveitando os breves momentos… enquanto Deus descansa!
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.