
Análise de A Vingança do Conde Skarbek
Em termos literários, gosto particularmente do século XIX. Mais precisamente, daquele momento em que a corrente romântica e a corrente realista se tocam.
Não sendo o local próprio para discorrer acerca de correntes e géneros literários, não posso deixar de dizer que a fusão do romantismo e do realismo criaram a mescla perfeita da qual derivam, quanto a mim, a maior parte dos géneros literários surgidos desde o final do século XIX (o policial, o terror, a alta fantasia e até a ficção científica, sem descurar, claro está, a evolução dos géneros já existentes).
O momento em que romantismo e realismo se tocam é o momento em que Walter Scott abraça Balzac, Vitor Hugo pisca o olho a Conan Doyle, Oscar Wilde se diverte com Virginia Woolf, Eça de Queirós e Alexandre Dumas fumam juntos um bom charuto e Júlio Verne e H. G. Wells decidem o futuro do mundo.
Poderão perguntar o que é que isto tem a ver com a obra A Vingança do Conde Skarbek, de Yves Sente (argumento) e Grzegorz Rosinski (arte), que a Arte de Autor publicou recentemente (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui). Tem tudo a ver, pois esta pérola da 9.ª Arte é uma excelente representante no século XXI dessa fusão que se iniciou no século XIX. Aliás, por alguma razão, o fio condutor desta obra nos lembra amiúde a obra folhetinesca de Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo.

Vamos à história!
Em 1843, um nobre polaco de nome Conde Mieszko Skarbek desembarca no movimentado porto de Saint-Malo. Chegado depois a Paris, enclausura-se numa enorme mansão. Dela só sairá misteriosamente um dia, acompanhado por um prestigiado banqueiro, para a inauguração de uma exposição de arte.

Aproveitando o concorrido ambiente mundano que se lhe depara na exposição de pintura, Skarbek apresenta-se a um marchand de arte, o Conde de Northbrook. Famoso por possuir a maior parte da obra de Paulus, um artista desaparecido misteriosamente, Northbrook desvela a Skarbek uma das telas do pintor desconhecida do público.
O nu representado no quadro não é outro do que o da musa de Paulus, uma jovem mulher de nome Magdalena. Como que mesmerizado pela sua beleza, Skarbek manda procurá-la no dia seguinte e, ao encontrá-la, paga-lhe generosamente para que sirva de modelo uma vez mais. De olhos vendados, despida, ela é levada a posar para Skarbek. Quando a obra é terminada, e já desvendada, Magdalena descobre estupefacta o resultado final e reconhece de imediato em Skarbek o pintor Louis Paulus, desaparecido há dez anos.
Skarbek tem um plano. E a sua vingança implacável tem inicio… sobre todos aqueles que há uma década o roubaram e deixaram às portas da morte.

Não há nada como colocarmos de parte, logo de princípio, qualquer ruído de fundo que nos distraia do principal. Assim, de facto o argumentista Yves Sente tem como fonte de inspiração para A Vingança do Conde Skarbek o clássico de Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo. Opção absolutamente assumida pelo autor que até se diverte introduzindo na obra o famoso “negro” (ou escritor fantasma) de Dumas. Contudo, este thriller romanesco descola inteligentemente da obra clássica e é, por si só, uma leitura apaixonante.
Na verdade, quando se junta um escritor experiente e bem-sucedido – como é Yves Sente – com um mestre do desenho e da pintura e criador, entre outros, de Thorgal – como é Grzegorz Rosinski -, só podemos esperar Arte elevada à quinta-essência!
Originalmente, a obra A Vingança do Conde Skarbek foi publicada em dois volumes, em francês, entre 2004 e 2005. E, quanto a mim, a opção da Arte de Autor de a publicar no mercado português num volume único foi a mais acertada pois mantém e aumenta o carácter folhetinesco tão caro a Alexandre Dumas, fonte de inspiração para Yves Sente.
A narrativa deambula entre o presente e uma série de flashbacks que nos vão revelando, a pouco e pouco o motivo que desperta no Conde Skarbek tão ávida sede de vingança. E se na primeira parte da história (primeiras 54 pranchas) o plano é posto em acção no presente, os peões colocados no tabuleiro, os flashbacks levam-nos até ao momento em que o pintor Paulus é supostamente morto e o pretexto das viagens ao passado são as cenas de tribunal no processo contra o Conde Northbrook…

…já na segunda parte, mantendo-se como décor principal o processo Northbrook entre as quatro paredes do tribunal, a maior parte da acção passa-se em longos flashbacks que farão as delícias dos amantes da brisa marítima, de lugares exóticos e de histórias de piratas.

O argumento de Yves Sente multiplica-se em engodos, ilusões e reviravoltas sem, no entanto, perder o rumo com fantasias pouco credíveis. Tudo tem lógica, mas o leitor irá ser surpreendido até à prancha final.
E Sente não tem pressa, leva o seu tempo, prepara o leitor e consegue envolver-nos num processo de tribunal complexo e nas aventuras épicas do Conde Skarbek, repletas de traições, amores e desamores, golpes de teatro e, sobretudo, de vingança. A narrativa de Yves Sente joga com o tempo, com os personagens, com os seus destinos, mas joga, sobretudo, com os nossos nervos que são postos à prova por um argumento tão complexo quanto bem conseguido.

Mas, sem dúvida, o grande responsável pelo sucesso imediato desta obra é o desenhador Rosinski (ver artigo Rosinski, o Eterno Inovador). Juntamente com Hermann, este é o meu autor fetiche no mundo da Banda Desenhada franco-belga. E aqui, a vários níveis, prova ser um dos grandes mestres da 9.ª Arte.
No auge da sua carreira, recusa-se a baixar os braços, a repetir o que já fez inúmeras vezes, e renova o seu processo criativo pintando em cores directas cada prancha, em tela, com execução vertical. E os materiais usados vão do óleo, do pastel, guaches ou dos marcadores até à Coca-Cola. O resultado é sempre sumptuoso, de cortar a respiração, tanto nas pequenas cenas…

…como nas mais grandiosas, como é o caso desta representação da batalha de Waterloo.

Muitas das vinhetas são verdadeiros quadros, obras de arte que nos remetem tanto para os velhos mestres, como é o caso do porto de Saint-Malo, quando Skarbek embarca para o Novo Mundo…

…como nos fazem mergulhar maravilhosamente na Paris romanesca do século XIX, num estilo que Rosinski mantém próximo do Impressionismo.

Não há uma sombra ou um reflexo de luz que não sejam sabiamente conseguidos e a paleta de cores, ela própria faz parte integrante da narrativa. Assim, se na primeira parte da obra as cores estão mais conforme o “Velho Mundo”, na segunda parte Rosinski representa o “Novo Mundo” através de cores mais vivas, bem apropriadas para o paraíso que é a ilha do Mont Cristobald, nas Caraíbas.

A Arte como narrativa por si só está bem visível em muitas das cenas desta obra. Destacarei apenas mais duas.
Passados dez anos do seu desaparecimento, Skarbek/Paulus seduz mais uma vez Magdalena. A noite é de paixão, um reencontro ansiado, uma vontade incontrolável bem expressa nas cores quentes com as quais Rosinski pinta toda a prancha. Mas extinto o fogo da paixão, no silêncio solitário da noite, Rosinski envolve-nos em cores frias.


A segunda cena é um flashback que nos remete para o Novo Mundo. Mais uma vez, as cores são predominantemente vivas, com excepção da última vinheta na qual regressamos ao Velho Mundo e ao narrador que relata a cena a um Alexandre Dumas atónito.

É difícil não elogiar a arte de Rosinski que, com igual facilidade, nos faz participar nos pequenos momentos da estória como nos grandes momentos da História. De um Skarbek dentro de uma carruagem em Varsóvia, à revolta dos parisienses em 1830 e dos belgas no mesmo ano e à intervenção do Czar da Rússia, Nicolau I, no conflito. São os grandes frescos da História ao serviço da narrativa.

Num registo mais intimista, uma palavra ainda para os nus e para as cenas de sexo de Skarbek com Magdalena e com Violette, a pirata mestiça por quem se apaixona. Esteticamente perfeitas, de uma elegância inquestionável, servem, por um lado, para ir mostrando a obra do pintor Paulus, e por outro lado, para humanizar o vingativo Skarbek.

A Vingança do Conde Skarbek tem muitos méritos; tantos que seria fastidioso elencá-los. Para terminar, destacarei apenas alguns.
Desde logo, uma excelente reconstituição do século XIX, tanto a nível social como histórico: as vernissages, os prostíbulos, o passeio público, os jornais como meio apaixonante da divulgação da notícia, os grandes casos de tribunal, as convulsões socias que assolam a Europa, as guerras entre Absolutistas e Liberais. Tudo é tratado com minúcia e muitas referências que não passarão despercebidas aos mais atentos.

Uma narrativa para ser lida como um folhetim de um jornal da época (tão caros a vários autores portugueses de então) que confere à obra uma dinâmica muito particular que se traduz numa espécie de episódios ou capítulos que tornam a leitura mais empolgante, a partir de uma suposta reportagem acerca do processo Northbrook, um marchand de arte sem escrúpulos.

Um argumento bem construído, cheio de reviravoltas e com um fim absolutamente inesperado.
E como se os argumentos ainda não fossem suficientes, uma arte a todos os níveis genial, a que se acrescenta na edição portuguesa um caderno de extras.
Quando, em 2020, comecei a escrever para o Bandas Desenhadas, logo no primeiro artigo mencionei esta obra. Parece que um editor português me ouviu. Agora, à laia de sugestão menciono a série Complainte des Landes Perdues, escrita por Jean Dufaux e cujo primeiro ciclo foi também desenhado por Rosinski. Em Portugal só foi publicado o primeiro volume desta “Fábulas das Terras Perdidas”, mas no mercado francófono já vai no quarto ciclo, com Delaby (Murena), Béatrice Tillier e Paul Teng encarregues do desenho dos segundo, terceiro e quarto ciclos respectivamente. E com grande sucesso.
É que, quando cada quadradinho é uma obra de arte, não há que hesitar!


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.
Mais uma obra de arte e um texto Critico à sua altura.
Pela parte que me toca, muito obrigado, caro Rui Silveira.
Mas, como sempre, o mérito é dos autores da obra.
Abraço