Os Portugais: Na Estrada da Solidão!

Os Portugais: Na Estrada da Solidão!

Análise de Os/Les Portugais

Ele há temas que podem parecer áridos ou muito batidos e cansados ou ainda por demais miserabilistas.

Ele há temas enganadores!

A imigração portuguesa para França nas décadas de 60 e 70 do século XX é um desses temas. Um tema enganador, por estar cheio de histórias muitas vezes repetidas, que nos entediam e, sobretudo, que nivelam qualquer traço de aventura que se sinta única e individual. O álbum Os/Les Portugais, de Olivier Afonso (argumento) e de Chico (desenho), publicado pela Ala dos Livros (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui), sem ignorar os traços comuns àqueles que constituem a maioria que integra a diáspora portuguesa em França, conta-nos uma história única, de resiliência, coragem, espírito positivo e grande Humanidade.

Vamos à história!

Agosto de 1973. Fronteira franco-espanhola.

O roncar de um motor corta o silêncio da isolada estrada de montanha. O carro para. O condutor abre o porta-bagagens e, de lá de dentro, sai um homem. As palavras entre os dois são breves, quase parecem coreografadas e o passador apressa-se a partir, não antes de encaminhar o homem para a aldeia que se avista mais abaixo no vale e de o aconselhar a ser discreto.

Ao longe ouvem-se as badaladas do campanário. Sozinho, o homem desce para a aldeia e sacia a sede na fonte da praça, enquanto as pessoas respondem ao chamado do sino da igreja. De repente, uma algazarra chama a sua atenção. Polícias franceses e habitantes locais perseguem um jovem homem que parece ter a sua idade e que foge pedalando furioso uma bicicleta.

Rapidamente, o nosso homem é associado ao fugitivo e passa também a ser alvo dos perseguidores. Encontram ambos refúgio na floresta e acabam por esbarrar um no outro. O homem que acaba de passar a fronteira a salto é Mário e o ciclista fugitivo é Nel. Os dois são imigrantes ilegais portugueses, fugidos do regime de Salazar, da pobreza e da conscrição obrigatória para as guerras ultramarinas. O seu objectivo agora é Paris, mas mesmo uma viagem em linha recta pode ter muitas curvas e o destino sonhado pode não ser um destino de sonho…

Olivier Afonso, através da história de Mário (que bem podia ser o seu pai), conta-nos a aventura de cerca de 700 mil portugueses que entre 1957 e 1974 imigraram para França, maioritariamente de forma clandestina. É a miséria generalizada que graça em Portugal sob o regime de Salazar e o espectro da guerra nas províncias ultramarinas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau que fazem com que tão grande número de portugueses mergulhe no desconhecido para acabarem, na sua maioria, como pedreiros de excelência. E mesmo sendo clandestinos, França não os recusa, pois precisa de mão de obra barata para a construção e obras públicas.

Mas a história de Mário, embora semelhante a tantas outras, é também única. Este protagonista não tem nada de particular – não tem superpoderes, não derrota impérios, não dispara mais rápido que a própria sombra nem pilota naves espaciais. Não, este protagonista é a personificação da banalidade e é precisamente essa característica que o torna cativante. A narrativa de Olivier Afonso confronta a simplicidade do protagonista com situações de extrema dureza e é deste confronto que emerge a singularidade do personagem.

Ingénuo e voluntarioso, ao contrário de Nel que é mais do estilo gabarola e adepto do “desenrascanço”, é deles que vamos seguir o percurso num ambiente próximo daquele que estamos habituados a ver em países do Terceiro Mundo. Vivendo numa “bidonville”, bairro-de-lata ou favela (chamem-lhe o que quiserem), Mário e Nel têm de conviver com patrões desonestos, polícias corruptos e a dureza e os perigos dos trabalhos nas obras.

E apesar disso, longe de adoptar uma narrativa miserabilista, Olivier Afonso opta por focar-se na solidariedade, na bondade e mesmo no amor (ou não houvesse uma Eva no meio deste paraíso perdido).

E ao passar das páginas, entusiasmamo-nos, vibramos e divertimo-nos ao lado destes representantes de uma geração que, enfrentando agruras e tumultos sociais, soube manter um espírito alegremente brincalhão que perpassa também na história que nos conta Olivier Afonso.

Quanto ao desenho a cargo de Chico (pseudónimo de Aurélien Ottenwaelter), cumpre em absoluto e com eficácia as suas funções. Dinâmico, nervoso, lembra por vezes o estilo de Christophe Blain ou de Manu Larcenet (ver artigo O Relatório de Brodeck: E Quando Não há Heróis?!).

O traço, que parece um pouco hesitante, impreciso e dado pouco a detalhes, na verdade consegue criar composições que, vistas no todo, nos enchem de pormenores.

Para além disso, é um traço que parece extremamente adequado ao estado de espírito destes imigrantes que têm de se reinventar quase todos os dias.

Acho particularmente cuidada a recriação da vida nas “bidonvilles” que, invariavelmente, nos bombardeia com pormenores do quotidiano pesado de Mário e Nel, mesmo quando a acção se centra nestes protagonistas.

Mas a arte de Chico contribui também para acompanhar a narrativa no que à resiliência, coragem e alegria diz respeito. Temos assim momentos em que o seu traço parece explodir em todas as direcções, quase como se descontrolasse, como se gritasse “conseguimos!”.

Com a arte de Chico não basta olharmos para a página ou mesmo para uma só vinheta. Temos de individualizá-la, fazer-lhe um zoom e deixarmo-nos levar pela beleza estética que, tantas vezes, é escondida pela dureza das mensagens.

Na derradeira imagem desta obra, os autores oferecem-nos uma página dupla – o fim da demanda solitária em busca de um destino individual. As cores ocres que predominam nas cenas do bairro-de-lata e que nos remetem para um imaginário do Faroeste já parecem uma memória distante. Um bloco de apartamentos domina uma imensidão de telhados que se estende por quilómetros até se deter nos verdejantes Champs de Mars que acomodam a Torre Eiffel.

As fundações do prédio talvez escondam os insalubres bairros-de-lata, enterrando assim o suor e sangue de muitos portugueses.

Saindo de uma janela, anónimas para a cidade, ouvimos as vozes de Mário e Eva. O momento é importante. Escolhem o nome do filho acabado de nascer. A sua herança serão histórias, muitas histórias, vividas no trilho da antiga estrada da solidão…

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