Análise de Lucky Luke – A Arca de Rantanplan
Já lhe tiraram o cigarro… que foi substituído por uma palhinha 100% ecológica!
Já o quiseram casar… e quase deixou de ser um “cowboy solitário”!
Até já o obrigaram a usar máscara… como um dos reles fora-da-lei que persegue!
Só faltava mesmo mais esta! Agora querem proibi-lo de comer um bom bife!!!
Mais! Querem torná-lo vegetariano e acabar-lhe com a profissão de… cowboy! Que vá plantar couves e que se torne um couveboy!
Pobre Lucky Luke! Se não são os Dalton é o gangue de Jul e Achdé que não lhe dão descanso!
Se este fosse um novo álbum de Astérix, provavelmente chamar-se-ia “Astérix entre os vegetarianos”. Mas como se trata de uma nova aventura de Lucky Luke (a 82.ª), o título é A Arca de Rantanplan, e acaba de ser publicado pelas Edições Asa (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui). Depois da segregação racial (ver artigo Algodão de Sangue), agora é a vez de Jul (argumento) e Achdé (desenho) abordarem o tema do vegetarianismo e da defesa dos direitos dos animais.
Vamos à história!
Lucky Luke está com pressa! Quer chegar rapidamente a Cattle Gulch, uma cidade de criadores de gado onde há óptimos restaurantes. E Lucky Luke só sonha com um bom e suculento bife.
Depois de ele e Jolly Jumper (o seu fiel cavalo) chegarem à cidade, e no exacto momento que se prepara para almoçar, estala um tumulto na rua principal. Os habitantes de Cattle Gulch estão prestes a linchar Ovide Byrde, presidente da Sociedade Protetora dos Animais (e único membro), activista contra o consumo de bifes tenros e suculentos e vegetariano convicto.
A pronta intervenção de Lucky Luke evita que Byrde acabe pendurado pelo pescoço no ramo mais alto de uma árvore. De seguida, o “cowboy solitário” acompanha o vegetariano até à sua pequena quinta nos arrabaldes da cidade. E é lá que constata que os muitos animais que Byrde protege lhe retribuem com muito amor.
Byrde explica então a Lucky Luke a sua filosofia de vida, inspirada pelo movimento de Henry Bergh, o fundador da primeira Sociedade Protetora dos Animais na América. O Faroeste nunca foi um modelo de respeito para com os animais. Entre os caçadores de bisontes, os caçadores e negociantes de peles, os bovinos marcados com ferro em brasa ou os cavalos levados ao limite sob um sol mortífero, poucos são os animais que conseguem gozar de uma vida pacata. Byrde decidiu então dedicar a sua vida à protecção dos animais e, no processo, tentar convencer o maior número dos seus conhecidos a tornarem-se vegetarianos.
E enquanto explica tudo isto ao cowboy que dispara mais rápido que a sua própria sombra, este vê pela janela o cão mais lento que a sua própria sombra, o canídeo mais estúpido do Oeste Selvagem, o ridiculamente célebre Rantanplan.
E em aventura onde apareça Rantanplan, só se podem esperar os desenlaces mais estúpidos…
A Arca de Rantanplan é a quarta aventura de Lucky Luke que nos é trazida pela dupla Jul e Achdé e o décimo volume na colecção que retoma as aventuras do herói após a morte de Morris, o seu criador.
E se no primeiro álbum desta dupla se trata do choque cultural entre judeus e o povo do gatilho rápido; no segundo álbum se aborda o choque cultural entre americanos e europeus e no terceiro o tema é a escravatura, o racismo e a segregação racial, neste quarto volume o tema central é a defesa dos direitos dos animais e o vegetarianismo.
Com o argumentista Jul, Lucky Luke parece ter tomado uma consciência social que, na verdade, sempre teve, ainda que mitigada pelo correr das aventuras. Agora, tudo é feito mais às claras.
Mas nem por isso se pense que as aventuras do nosso cowboy se tornaram panfletárias e chatas. Antes pelo contrário! Respeitando os cânones criados por Morris e o tipo de humor pungente e, não raras vezes, cheio de referências, Jul transporta Lucky Luke para um público do século XXI e sem com isso cometer qualquer anacronismo.
Na verdade, foi em 1866 que Henry Bergh fundou a primeira Sociedade Protetora dos Animais. Ora, este é o período das aventuras de Lucky Luke não sendo estranho por isso falar-se de direitos dos animais ou de vegetarianismo.
O mote está dado! E daqui em diante, como é habitual nas aventuras do cowboy solitário, a história corre a par com a sucessão mirabolante de gags que aqui vivem das posições extremadas dos adoradores de carne que são os habitantes de Cattle Gulch e dos vegan, compostos pelo inocente Ovide Byrde e pelo gangue de veganos fora-da-lei criado pelo ex-presidiário Tacos Cornseed.
Cattle Gulch passa a Veggie Town, os comedores de carne são trancados na cadeia e quem se atrever a roer uma coxinha de frango é certo acabar com a corda ao pescoço.
E enquanto os animais tomam conta da cidade e Lucky Luke é preso pelos malfeitores, ainda há tempo para uma sempre bem-vinda guerra índia, desta feita com a tribo de Águia Intrépida.
Como tem sido habitual, Jul (tal como ocorria com Morris) diverte-se com os jogos de palavras (ver, por exemplo, na página 10 a pobre cobaia solitária e tão longe de sua casa, numa referência à canção de fecho de cada uma das aventuras de Lucky Luke) e as situações mais absurdas, nomeadamente, ao atribuir a Rantanplan, o cão mais estúpido do Faroeste, deduções que erram sempre o alvo.
Pelo trilho da aventura, somos ainda brindados com uma série de momentos absolutamente originais no universo morrisiano como é o caso da cena em que Lucky Luke mais parece um Bruce Lee do Oeste Selvagem (técnica que aprendeu com os chineses durante a construção do caminho de ferro da Califórnia)…
…ou um habitualmente fleumático Jolly Jumper a perder as estribeiras com uma manada de vacas barulhentas.
Como já tinha acontecido no álbum anterior com a segregação racial, os muitos gags servem de descompressor para o tema sério que vai sendo tratado ao longo da história – os direitos dos animais.
Ao mesmo tempo, Jul aborda formalmente a questão dos extremismos e dos radicalismos, os lados opostos que têm na cegueira idealista a sua pior arma.
No meio de toda esta confusão, chegamos a pensar o que será do pobre Lucky Luke. Depois de deixar de fumar em 1983, deixará agora de comer bifes? E passará ele a militar contra o seu próprio trabalho como cowboy?
Se os dados estão lançados, Jul é inteligente e limita-se a colocar Lucky Luke como o responsável por restabelecer a paz social. O debate de fundo fica assim para as gerações futuras.
Quanto ao desenho, Achdé, mais uma vez, está perfeitamente à altura de continuar a herança deixada por Morris. A planificação das pranchas, o traço, os personagens-caricatura de personalidades contemporâneas, a acção, o caótico ataque índio a Veggie Town, tudo faz lembrar Morris.
Mas nem por isso deixa de imprimir o seu cunho pessoal aqui e ali, com planos mais arriscados e um bestiário digno de La Fontaine: a pileca esquelética, o coite escanzelado, a tartaruga carrancuda, o texugo roliço, o papagaio furioso e tantos outros animais, não esquecendo os bifes… errr… perdão… as vacas, muitas vacas!
Outra imagem de marca de Achdé é aquela vinheta que se destaca em toda a obra, tanto pela sua dimensão (maior que todas as outras), como pelo dramatismo que a situação evoca. Desta vez (preparem-se para o spoiler!!!), Jolly Jumper parece ter chegado ao fim da sua carreira, vítima de uma bala perdida. Afinal, o assunto é ainda mais sério do que pensávamos e mesmo na 9.ª Arte os efeitos colaterais da estupidez humana parecem não olhar a quem!
Recomposto do choque e tentando racionalizar, só posso chegar à conclusão que Lucky Luke e as suas aventuras continuam a dar cartas. A continuidade de excelência relativa ao trabalho de Morris aliada à modernização das temáticas catapultaram definitivamente o nosso herói para os braços dos leitores do século XXI.
E o bom é que, quem tiver o primeiro contacto com Lucky Luke neste álbum, tem mais 81 que o antecedem, prontos a serem lidos.
É tempo das despedidas. Lucky Luke deixa para trás uma cidade pacificada e um Byrde a planear ensinar às criancinhas o respeito pelos animais através de histórias aos quadradinhos. Tal como no álbum anterior, a tradicional vinheta de fecho, onde Lucky Luke parte na direcção do pôr-do-sol cantando “Sou um pobre cowboy solitário, muito longe de casa”, é subvertida. Mais uma vez não parte sozinho (e agora, apeado). O papagaio furioso ecoa a velha canção e muitas milhas na direcção oposta, esquecida no Velho Oeste, fica perdida a cidade dos couveboys. Esperemos que não para sempre!
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.