Bootblack: Só falta mesmo Morricone!

Bootblack: Só falta mesmo Morricone!

Análise de Bootblack

Sob os pilares titânicos da ponte de Brooklyn ecoa a melodia triste de uma flauta de pã. Um grupo de rapazes, pequenos rufias nos seus melhores fatos, corre em várias direcções para salvar a vida. Dominic, um dos mais pequenos e ingénuos, é atingido nas costas por uma bala certeira e cai desamparado no chão. Enquanto os rapazes se escondem do perseguidor, Noodles ignora o perigo e vai ter com o amigo. Nos braços de Noodles, o pequeno Dominic, mesmo antes de largar o último suspiro, diz: “Escorreguei, Noodles…!”.

A vida, os sonhos, a esperança por algo melhor, tudo pode terminar por causa de um simples escorregão. Esta é uma das mensagens que Sergio Leone transmite na cena acima descrita pertencente à sua obra-prima “Era Uma Vez na América”, filme de 1984.

Depois de nos ter oferecido Giant, o escritor/desenhador Mikaël brinda-nos com Bootblack, o seu novo díptico nova-iorquino que a Ala dos Livros publicou recentemente em Portugal numa cuidada edição integral com um caderno final de extras (cf. apresentação e previews do lançamento nacional aqui).

Sendo uma obra absolutamente original, sinto em Bootblack uma inspiração que parece emanar do filme de Sergio Leone, tanto a nível de argumento como de soluções gráficas.

Mas antes de me alongar…

Vamos à história!

O nevoeiro teima em pairar sobre os campos. Os corpos dos soldados mortos jazem espalhados na terra lamacenta. São festim para os corvos que grasnam excitados. De joelhos, Al Chrysler parece contemplar o infinito enquanto segura nas mãos ensanguentadas a chapa de identificação de um dos seus camaradas de armas. Tantas chapas à sua volta… e os malditos corvos que debicam os olhos dos americanos caídos em combate! Al é o único sobrevivente da sua unidade e não vai permitir que os corvos se banqueteiem com os seus camaradas. Há que enterrá-los, a todos. E o olhar de Al vagueia pelo tempo, abandona aquele campo nas Ardenas em 1945 e regressa à sua Nova Iorque de 1929.

Al desce a correr os lances de escadas do prédio sórdido onde habitam na penúria várias famílias de imigrantes. O pai grita pelo seu nome: “Altenberg!” Na verdade, este é o nome do jovem rapaz de nove anos, mas ele odeia-o; remete-o para o passado dos pais, vindos da Alemanha. Ora, Al nasceu em solo americano e não suporta que o chamem assim. Resolve sair de casa. Aguenta estoicamente o frio da noite outonal até não suportar mais. Põe de parte o orgulho e regressa a casa. Mas o destino prega-lhe uma partida e o prédio onde habita a sua família está a ser consumido pela fúria das chamas. Al está sozinho, sem ninguém, perdido no monstro que é a cidade de Nova Iorque. E relembra o que dissera horas antes ao pai: “Aqui, as pessoas fazem-se sozinhas!!” O destino fez-lhe a vontade.

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