Uma entrevista a Daniel Maia sobre os seus projetos e colaborações mais recentes.
Nuno Pereira de Sousa: És o autor da 42.ª prancha de Um Comic Jam com o Lino. Como foi participar nesta experiência antológica?
Daniel Maia: Participar numa BD em sistema cadavre exquis é sempre um misto de desafio e de divertimento. Tinha noção do projeto, mas confesso não ter tido oportunidade para ler, o que acabou por ser ideal ao ser agora convidado a colaborar, pois pude ser genuíno ao critérios do cadavre exquis e intervir sem noções prévias; logo, também não tive de sofrer por comparação a anteriores colegas e pude focar-me em criar uma sequência que funcionasse em três níveis: usar as dicas da prancha anterior, lançar pontes narrativas para a página seguinte, e resultar bem se for lida isolada. Sou um forte adepto de cadavre exquis. Comecei por participar em jogos na Tertúlia BD de Lisboa (TBDL), nos anos 90, depois coordenei o webcomic “Cadáver Exquisito!”, com mais de 50 páginas, e é algo que fazemos em todos os encontros do coletivo Tágide.
NPS: Na tua opinião, quais são as maiores vantagens e desvantagens da técnica cadavre exquis em geral?
DM: Importa salientar que o sistema cadavre exquis que frequentemente aplicamos à banda desenhada é uma recriação do conceito original, devendo mais à ideia de BD coletiva do que é fiel ao jogo idealizado pelos Surrealistas. Todavia, o que fazemos é apetecível à prática da BD, por estimular a interação criativa entre autores e por nos facilitar obras curtas rápidas, com pouco esforço de cada interveniente. Como tal, é prático de ser realizado num convívio, num evento, etc, e acaba por ser a expressão mais espontânea de criação em BD que temos hoje em dia. Sinceramente, não acho que o sistema tenha desvantagens… Pode ter participação por amadores e profissionais, por artistas muito criativos e outros menos, e o virtuosismo gráfico pode nem ser um fator relevante, pois o desenho é suposto ser rápido e descomprometido.
NPS: E com que te debateste em concreto na produção da 42.ª prancha?
DM: A BD anterior, pela Rita Cortês, levou o protagonista Lino a um cenário familiar à mesa e evocou a crise de abastecimento, falta de toalhas de papel e Putin (Ras-Putin), daí que peguei nessas deixas e tentei estruturá-las num contexto coeso, com um vilão por detrás. Não quis ser demasiado óbvio e desenhar uma cena inspirada no filme Sétimo Selo, mas está implícita… E sendo o número 42 popular na cultura pop e não só, também quis reforçar as referências a ele na BD.
NPS: O teu argumento está pejado de referências, desde a crise energética e os problemas nas cadeias de abastecimento, com a escassez de papel a realizar uma perturbação direta no setor livreiro, até à mitologia egípcia, passado pelo próprio cadavre exquis, entre muitas outras. O que te motivou a evocar cada uma das referências e o que gostarias de dizer sobre as mesmas a quem está pouco familiarizado com elas?
DM: Na sequência das indicações herdadas da BD #41, tive sorte ao poder articular como as faltas de (toalhas de) papel podiam afetar a comunidade de BD e, curiosamente, descobri um pouco de verdade nesse cenário hipotético; quem privasse com o Lino sabia como ele via as coisas, sempre com a BD em primeiro lugar, pelo que não foi difícil pôr-me no seu lugar e imaginar como ele iria reagir a essas questões. Quanto às demais referências, selecionei algumas que fariam sentido tecer na narrativa, para dar peso à ação, e outras são só um picar-de-olho: logo a começar, a primeira fala é uma referência ao livro À Boleia pela Galáxia, de Douglas Adams; na 2.ª vinheta, há alusão à banda Boney M; na 3.ª, injectei jargão do sector editorial; na 4.ª vinheta, foi mencionada a atividade da própria Tertúlia BD de Lisboa, que o Lino criou em 1985; na 5.ª, evoquei as saudosas tertúlias no Parque Mayer, que vai decerto ser familiar a quem as frequentava; na 6.ª, para além de Ingmar Bergman, há alusão às 42 Confissões Negativas, que, na mitologia egípcia, consistem no ritual de passagem que a alma tem de superar para atingir o Além; e no fim, fiz uma espécie de cadavre-inception, com o Lino a enganar Rasputin, puxando-o para um jogo onde tem clara vantagem…
NPS: Não é a primeira vez que participas numa homenagem ao Lino, tendo o coletivo Tágide organizado e produzido a BD “Além Lino” em 2019. Como foi essa experiência durante o processo de produção e que feedback tiveste sobre a mesma?
DM: Estive com o Lino pela última vez na tertúlia de Natal de 2018, dois meses antes do falecimento. Acompanhei a Susana Resende, que apresentou o curso BD Montijo: Iniciação à Arte Sequencial e alguns dos alunos, e marcou a estreia editorial destes com o fanzine Cadavres para Iniciantes #1, que resultou de desafio cadavre exquis feito em paralelo à formação. Anunciámos ainda a criação do Tágide, que estava a decorrer mas seria oficializado em março de 2019. Frisei-o ali, por saber que o Lino ficaria entusiasmado com o surgimento de um novo polo de banda desenhada no país. Nessa ocasião, o grupo colaborou num cadavre exquis e, em alusão ao filme Eles Vivem!, ilustrei o Lino armado e a adaptar a célebre frase “Vim aqui para ler BD e rebentar cabeças. E já li as Bandas Desenhadas todas!…”, que o fez rir. Acabei por refazer esse desenho para o fanzine e exposição de tributo, e uma ampliação do mesmo está patente na Fanzineteca da Biblioteca Municipal de Alpiarça. Dada a apresentação destes novos autores à comunidade ter sido feita na 414.ª TBDL, desafiei-os a criar uma BD coletiva com o Lino como protagonista; ilustrei a capa, o prólogo e epílogo, e cada autor assinou 1 página. “Além Lino” foi editada no Tertúlia BDzine #187, na 427.ª TBDL, volvido 1 ano da nossa anterior presença lá, e foi nomeada para Melhor Obra Curta do XVII Troféus Central Comics. Participaram os autores António Coelho, Maria João Claré, Patrícia Costa, Pedro Cruz, Shania Santos, Susana Resende, Yves Darbos e eu. Embora não tenha sido possível desfrutar da reação do Lino à BD, quero crer que teria gostado do tributo. Dito isto, para quem o conhecia, como no meu caso, obviamente não foi fácil ilustrar o Lino após a sua partida… Mas saber que ele não teria escolhido melhor forma de ser celebrado, reconfortou-me. O Lino não era lamechas quanto ao seu eventual falecimento, mas sem dúvida adorava ser retratado em bandas desenhadas ou em desenhos soltos. Era a sua forma de imortalidade favorita!
NPS: Para alguém que chegue recentemente ao meio e, infelizmente, não tenha tido a oportunidade de privar com Geraldes Lino, como descreverias sumariamente o seu papel na banda desenhada?
DM: O Lino mereceu vários epítetos ao longo do seu percurso no sector, mas temo que não sejam o suficiente para descrever a profundidade da sua influência na comunidade de BD. Não só era um extremoso divulgador das atividades editoriais e culturais da área, como cultivava a memória da banda desenhada e promovia as novas gerações de artistas, tendo ainda gozo em descobrir novos talentos nos seus projetos editorais, como editor independente ou em associação a outros títulos. Enquanto especialista, não só agia como investigador, jurado e orador, como era embaixador de Portugal na matéria e regularmente abordado para apoiar em edições, com informação histórica ou como revisor. Não se importava se a tarefa era preponderante ou invisível, ele estava sempre disponível a apoiar. O Lino projetava no futuro a sua preocupação quanto à BD, procurando prever os caminhos que a criação e edição podiam levar, e tentava facilitar a História no arrumo dos momentos que estava a testemunhar; como, por exemplo, ao convencionar novos termos como prozine, fan-álbum etc. A promoção e valorização da BD, enquanto arte e área literária, eram o propósito da sua vida, e isso também se refletia em manter a comunidade coesa, motivo porque coordenava a Tertúlia de BD. Em suma, o Lino veio provar que não é preciso ser autor para deixar uma grande marca no sector.
NPS: Recentemente, foi anunciado que o 9.º número de Outras Bandas seria o último. Que balanço fazes desta experiência? E do coletivo Tágide, em geral?
DM: Os tempos mudam e também as tendências. Nos anos 90, na ausência das revistas que sustinham o sector da BD, coube aos fanzines manter a chama acesa, funcionando como laboratório criativo e farol para novos talentos. No novo milénio, o advento da impressão Offset Digital levou os fanzines a perder terreno para a pequena imprensa, que pôde, com pouco investimento, produzir pequenas tiragens e atingir qualidades próximas do Offset. A evolução desse segmento adensou a apatia do leitor face aos tradicionais fanzines, e também os autores quiseram avançar para editar em álbuns. Embora o fanzine seja uma “instituição” da prática editorial de banda desenhada, razão porque o Tágide quis contribuir para a continuação desse formato no sector, a verdade é que o atual custo de produção e a expectativa de preço baixo não o torna um projeto sustentável. Assim, vamos descontinuar o título, possivelmente regressando a ele pontualmente, e apostar numa publicação antológica em formato de álbum, que também regularize a criação dos colegas. O balanço até aqui tem sido positivo, mas pensamos que vamos chegar mais longe noutro formato. De resto, o grupo está ativo na sua nova sede, o Ateneu Popular de Montijo, onde se reúne mensalmente. Fazemos ali convívio criativo, breves formações, partilha de artes e de leituras, etc, usualmente na 3.a semana do mês. Em breve, queremos propor atividades culturais em parceria com o município. Podem seguir toda a actividade do Tágide e/ou dos seus membros no nosso blogue.
NPS: E que feedback tens tido das restantes publicações em que fostes um dos autores em 2022, Aurora Boreal em Reflexos Partilhados e CoBrA: Operação Goa?
DM: O álbum CoBrA: Operação Goa, escrito por Marco Calhorda e editado pela Ala dos Livros, atingiu tudo o que esperávamos. O feedback tem sido excelente, não só por ser reconhecido o mérito da obra, como por obter dezenas de críticas, na net, rádio e TV. As vendas são excelentes também, sendo dos álbuns nacionais que mais venderam em feiras e festivais no ano passado. E tivemos indicações para prémios do sector, o que é sempre agradável também. A antologia Aurora Boreal tinha menores expectativas, dado ser um projeto mais particular, que visava apenas concluir em banda desenhada a saga editorial, que se desenrolava em prosa desde 2017. Logo, é de menor acesso ao público, embora nos tenhamos preocupado em contextualizar a heroína a novos leitores. Sendo um livro muito eclético, o feedback que nos chega é muito variado. Penso que a edição vá estar sempre associada a ser a última edição em vida do mestre José Ruy, mas, para nós, foi um prazer contar com a sua participação e saber da sua reação positiva ao livro.
NPS: Fala-nos um pouco da tua experiência com a banda desenhada como um meio de marketing do Futebol Clube do Porto.
O projecto FCP-BD: 2022/2023 é uma campanha publicitária do FC Porto mascarada de banda desenhada, que visa galvanizar os adeptos a ir apoiar a equipa nos jogos em casa. É de salientar que embora uma ou outra equipa europeia no passado tenha recorrido a ilustração para publicitar jogos, esta é a primeira vez que uma BD autêntica é criada para o efeito, sendo vanguardista nesse sentido, a nível mundial. Como escritor, desenhista e balonista, estou a contar com o apoio da Susana Resende na cor e com a magnífica orientação do Departamento Publicitário do FCP, para criar as sequências. Estas não só procuram celebrar o clube e entusiasmar os fãs, como também promover a cidade como parte da identidade da equipa. E o feedback tem sido excelente, tanto a nível de adeptos como a nível interno. E antes que perguntem: eu não sigo futebol, pelo que não sou adepto de qualquer clube. A minha família divide-se entre o Benfica e Sporting, portanto, acabei por hostilizar os familiares por igual!
NPS: Para além do Outras Bandas n.º 9, no que toca à banda desenhada, podes revelar se e onde vamos poder ver mais trabalhos teus em 2023?
DM: O Outras Bandas #9 está previsto ser apresentado no 18.º Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja. Por outro lado, vou editar dois álbuns histórico-institucionais já concluídos: o primeiro é sobre a história da rota sul da Malaposta e o outro está por anunciar. Vou ainda colaborar em dois volumes antológicos, sendo um deles o do coletivo Tágide. E, até ao fim do ano, haverá a (re)edição expandida d’O Infante Portugal em Universos Reunidos, enquanto desenvolvo, em paralelo, uma nova banda desenhada.
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.