
Uma entrevista aos irmãos Duarte e Henrique Gandum sobre os seus projetos e colaborações mais recentes.
Nuno Pereira de Sousa: A que se deve a decisão de fazer uma nova edição definitiva do volume I de Congo?
Henrique Gandum: Deve-se sobretudo ao facto da grande divergência gráfica entre volumes. E precisávamos de uma versão do nosso primeiro livro – porque não o deixa de ser, mesmo que refeito – que estivesse apta para ser internacionalizada. Algo no qual ainda estamos a trabalhar, pois é algo que queremos muito, a este ponto.
Duarte Gandum: A decisão surge de 3 grandes necessidades. A primeira é o facto de que já não conseguíamos fornecer mais exemplares do volume 1 para distribuição em lojas e eventos, e isto afeta severamente as vendas do volume 2, do spin-off Amélia e, consequentemente, de um futuro volume 3, portanto tinha mesmo que haver uma nova edição do volume 1. A segunda razão surge da nossa vontade em trazer uma melhor consistência à linguagem visual da série. A terceira razão é a nossa grande vontade de internacionalizar o projeto, e poder publicar os livros no estrangeiro eventualmente, visto que muitos dos nossos seguidores nas redes sociais não são portugueses.
NPS: O que mudou nesta nova edição?
HG: Tudo. Eu diria que, claramente, muitas das vinhetas remetem às do original – nem poderia deixar de ser assim -, mas foi tudo refeito de raiz. Do desenho à legendagem, como toda a parte gráfica. A própria capa, embora remeta, de certa forma, à original, diria que se encontra muito mais dentro do que as pessoas podem esperar no livro. Sobretudo em termos gráficos, que é algo que nunca havíamos feito com os outros.
DG: Nesta edição, existem grandes diferenças na parte gráfica. O álbum foi trabalhado totalmente de raiz. Apesar de inicialmente ter discutido com o Henrique para que aproveitasse, pelo menos, alguma da traçagem da edição original, ele optou por refazer tudo. Existem também algumas diferenças narrativas, mas estas são muito mais subtis, com a exceção da inclusão de uma cena totalmente nova.
NPS: Entretanto, quanto ao volume II e ao spin-off Amélia, haverá também novas edições?
HG: Não, de todo. O máximo que temos pensado é uma sobrecapa que adapte o mesmo estilo deste novo livro, para ser distribuída nos festivais e, de certa forma, dar essa escolha ao público.
DG: Não temos previstas novas edições para os outros livros. Normalmente quando publicamos um livro, já temos o próximo planeado. Portanto, sabíamos que íamos revisitar o volume I assim que saiu Amélia.
NPS: E para quando novos álbuns de Congo? O próximo será o volume III ou um spin-off?
HG: O próximo livro do Congo será o volume III. Sabemos que temos colocado outros lançamentos à frente desse, pois necessitámos de fazer este rebranding. E, às vezes, precisamos de dar um passo atrás para dar dois à frente. Devido ao elevado número de páginas deste próximo volume, não consigo dizer quando será publicado. Mas tenho estado a trabalhar nele, sempre que posso.
DG: Existe a possibilidade de expandirmos a história com novos spin-offs mais tarde, mas, por agora, apenas sabemos que vamos ter a seguir o volume 3.
NPS: Têm definido quantos volumes terá a série?
HG: A série terá quatro volumes. Inicialmente queríamos três, mas isso iria requerer um terceiro volume com mais de duzentas páginas, o que faria com que levasse ainda muito mais tempo.
DG: Acredito que a série deverá acabar no 4.º volume, mas não digo isto com 100% de certeza. Creio que a história deve acabar onde deve acabar.

NPS: A série Congo teve direito também a uma curta-metragem em 2019, realizada por vós. Como foi essa experiência?
HG: Foi incrível! Já tínhamos realizado o vídeo promocional, com o Nuno Nolasco, em 2017, assim como tínhamos também feito outros projetos, pelo que já tínhamos alguma bagagem. Mesmo assim, a curta-metragem foi, de longe, o nosso trabalho mais importante no meio audiovisual. Mas também o mais exaustivo. Embora acabe por ser uma “boa” exaustão, gostávamos que a curta tivesse tido mais reconhecimento.
DG: Foi muito stressante, mas ver o resultado final foi igualmente gratificante. No geral, foi uma experiência incrível! E, sem dúvida, é algo que gostaríamos de fazer de novo e numa escala maior.
NPS: E como foi trabalhar com o saudoso Pedro Lima?
HG: O Pedro foi, sem dúvida, uma das melhores pessoas que já conheci. Até hoje, eu não sei como um ator com os anos de carreira que ele já tinha na altura conseguiu confiar tanto em dois rapazes – o meu irmão nem 20 anos tinha – novos, que o contactaram via Facebook. Fui eu que lhe enviei a mensagem, e a resposta não tardou em vir. Foi positiva, claro. Acabámos por nos encontrar pessoalmente depois, e ele aceitou fazer parte do projeto, de braços abertos. Foi curioso ver que até ele próprio – tal como imensas pessoas – acreditou que eu me baseei na sua aparência para conceber o protagonista da história, o Major Afonso Ferreira. A verdade é que até chegámos a fazer casting a diversos outros atores que, por motivos de agenda, não podiam participar nas gravações nas datas que nos eram possíveis. Parece que foi um pouco obra do destino que o ator mais idêntico – e que nós acreditámos também ser o mais difícil de conseguir contactar, devido ao seu estatuto e agenda preenchida- foi o que acabou por interpretar o nosso personagem. A relação com ele, mesmo após as gravações, tornou-se muito mais que uma relação ator-realizador. Cheguei a estar com ele em outras ocasiões. Era uma pessoa com uma presença fortíssima, algo notável na nossa curta. Simplesmente não tenho palavras para explicar a falta que ele faz. Nem as boas memórias que ele nos deixou. Este nosso novo livro é-lhe inteiramente dedicado.
DG: Foi incrível trabalhar com ele. O Pedro era muito humilde e tinha noção das dificuldades que tínhamos enquanto cineastas independentes. Ele esteve bastante envolvido no processo, principalmente durante a pré-produção. Teve até o cuidado de deixar crescer o bigode para uma das cenas do filme, não sendo necessária caracterização.
NPS: Planeiam continuar a explorar a série com mais curta-metragens ou incursões noutros media?
HG: Sem dúvida. Usamos sempre animações curtas para promover os nossos livros. Em relação a uma próxima curta, também já temos algo estruturado. Bastante diferente da nossa última – não teremos canoa (risos). Mais novidades sobre isso em breve…
DG: A realidade é que curtas como No Caminho das Trevas são muito dispendiosas e, da próxima vez que fizermos algo semelhante, estamos a contar ter algum apoio, pelo menos financeiro. É importante também que os livros sejam bem-sucedidos para que haja vontade do público de ver esta história em filme ou série. Também seria do nosso interesse poder vir a explorar esta história em animação, caso o live-action seja demasiado ambicioso.
NPS: De onde surgiu o interesse na criptozoologia? Atualmente, esse interesse vai além da pesquisa de material para a série Congo?
HG: Desde muito novo que passava os dias na casa dos meus avós a ver os programas do Discovery Channel, Odisseia, Canal História e National Geographic, enquanto os meus colegas viam mais desenhos animados ou animes – eu também os via, apenas não muito frequentemente. Em todos estes canais haviam programas onde um ou vários apresentadores viajavam aos locais mais inóspitos do Planeta em busca de animais desconhecidos para a ciência, outrora relatados por nativos e exploradores. Um dos locais mais frequentes era o Congo. Eles conseguiam passar muito bem a ideia do quão remoto era e o quão estranhos eram os animais naquele local. E aquilo fascinava-me imenso. Houve até um programa onde um cientista descobriu uma espécie de tarântula que se alimentava de galinhas. Tendo eu já estabelecida uma enorme paixão por aranhas, no geral, ver que estes programas abordavam muitas vezes a mítica tarântula gigante J’ba Fofi, foi o meu ponto de entrada direto para o mundo da criptozoologia. E o Mokele Mbembe também foi. Atualmente, consigo ver as coisas de um outro prisma. Está claro, para mim, que estes animais não existem nem nunca existiram, da forma descrita. Não existem evidências que suportem a ideia de uma tarântula com mais de um metro de envergadura, muito menos de um dinossauro saurópode semiaquático, nos tempos modernos. Mas… E se houvessem? É sempre bom poder realizar este exercício de ficção/evolução especulativa. Se estes animais tivessem tido a oportunidade de continuar a evoluir, longe de nós, claro, durante estes últimos 65 milhões de anos, no seu ecossistema, como seriam? A criptozoologia continua a ser fascinante para mim, mas de uma forma diferente, pois quero fugir de todas e quaisquer ideias criacionistas. Prefiro colocar estes seres num cenário fictício, do que perpetuar a ideia de que existem animais gigantes pré-históricos, sem bases científicas ou evidências, no mundo atual. Por mais que animais, como o ocapi, já tenham sido igualmente “ridicularizados”, até se provar que existiam – e existem -, no início do século XX.

NPS: Em janeiro de 2023, foi publicado o fanzine de banda desenhada A Última Arte. Como surgiu este projeto?
HG: O fanzine surgiu, sobretudo, devido a um trabalho prático para a unidade curricular “Banda Desenhada”, lecionada pela professora e autora Joana Afonso, em que tinha de criar uma breve história de quatro páginas. Estando eu com imensos outros projetos – alguns também de BD -, além de trabalho freelance, na altura, pedi ajuda à minha namorada, a Inês Pires, para a construção do argumento. Sabia que queria algo do género apocalíptico com mortos-vivos, mas não sabia como abordá-lo, de forma a ser original, visto que existe uma grande fadiga de conteúdo deste tipo. Foi aí que a Inês sugeriu que a história decorresse na própria Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, retratando uma ação com a qual todos os estudantes e professores da faculdade pudessem se relacionar. Não só sugeriu, como também a escreveu – com base nos meus relatos do dia-a-dia -, poupando-me imenso trabalho.
NPS: Para quem não conhece a BD, o que podes contar sobre ela, sem fazer muitos spoilers?
HG: É curioso ver a reação das pessoas quando digo que se trata de uma BD sem falas, que não foi inicialmente pensada para comercialização. Este fanzine aconteceu sobretudo por “culpa” do professor Artur Ramos, que leciona, entre outras, as aulas de Desenho de Modelo, pelo que creio que a BD teve um impacto diferente para ele, visto que acaba por “retratar” uma parte do quotidiano do professor. Penso que isto que acabei de dizer, só por si, já acaba por revelar o que as pessoas podem esperar deste fanzine. Sobretudo quem estudou, ou está familiarizado, com o meio retratado.
NPS: Entretanto, o fanzine esgotou. Estão a pensar em realizar uma reimpressão?
HG: Por agora, não. Posso considerar uma reimpressão talvez para o AmadoraBD, mas não antes disso. Não sei se teria, no entanto, de acrescentar mais conteúdo, pois não deixa de ser uma BD feita, sobretudo, para um nicho de leitores que aproveita melhor a experiência ao conhecer o local da história na íntegra.
NPS: A maioria das vossas publicações tem sido feita sob uma chancela própria, a Mudnag. Como encaram atualmente essa escolha, em detrimento de serem publicadas por uma editora de outrem?
HG: Creio que, no nosso caso, o facto de termos esta nossa chancela seja muito mais benéfico. Não descreditando, claro, as fantásticas editoras nacionais de BD, que fazem um trabalho excelente com os seus autores, mas não vemos uma vantagem óbvia em editar, por exemplo, esta nossa série com outra chancela ou editora. O trabalho e investimento é muito maior, mas depois o retorno também acaba por ser. No fundo, é uma questão dos autores conhecerem suficientemente o meio e decidirem. Penso que hoje em dia existam vantagens óbvias com a autoedição, mas também existem ainda muitas desvantagens.
DG: Apesar de ser um investimento muito maior ao início, a recompensa em fazermos os nossos próprios livros também é significativamente maior. Nós trabalhamos todo o livro, desde tudo aquilo que consta da história em BD até à paginação e preparação para impressão. Temos também a vantagem de podermos lançar os livros quando quisermos, sem pressão de prazos, e quando estamos totalmente satisfeitos com o trabalho. Isto não quer dizer que não estamos abertos a novas oportunidades para, no futuro, editarmos os nossos livros com outras editoras, mas, de qualquer forma, havemos de lançar os livros que tivermos a lançar.

NPS: E como foi a experiência ao coeditar com a Ego Editora o spin-off Amélia?
HG: A Cláudia e o Tiago [Leal], da Ego, foram e têm sido incríveis connosco. Nunca pensámos ter esta proposta pela parte deles, pois o Amélia não era para ter o número de páginas que teve – foi escrito para ser uma série da RTP ou Netflix, num daqueles concursos anuais -, nem uma edição tão bonita, com capa dura, inclusive. Não sendo uma editora especializada em BD, de todo, acabámos também por conseguir expandir um bocado isto da “BD nacional” a um público que a desconhecia. Temos muito a agradecer à Ego e esperamos continuar a ter.
DG: O spin-off Amélia, inicialmente, ia ser um fanzine com 24 páginas, com uma tiragem muito limitada e editado por nós. A proposta da Ego surgiu completamente de surpresa, e rapidamente sentimos que eles queriam elevar este trabalho a outro patamar, daí termos o livro com capa dura e com mais conteúdo também. A Ego ajudou-nos imenso, e ainda nos ajudam, inclusive com este último livro que acabámos de lançar.
NPS: O trabalho de um criador de banda desenhada é frequentemente isolado. No vosso caso, Congo é um projeto familiar. Como se realiza a dinâmica entre os dois irmãos?
HG: Temos muita facilidade em trabalhar juntos. Poucas palavras, ou até uma expressão, bastam para nos entendermos. O meu irmão é extremamente exigente, e ainda bem, porque isso também acabou por fazer com que eu crescesse neste meio. Comparo um bocado a nossa parceria à do Filipe Melo com o Juan Cavia, com a vantagem de que somos literalmente irmãos e temos a sorte de nos conseguir ver todos os dias e falar acerca dos nossos projetos. Com um destaque especial para o Congo, claro. Discordamos nalguns pontos de vista, mas acabamos sempre por encontrar um meio termo. O nosso volume II é um bom exemplo disso, onde existe um equilíbrio entre a ação que envolve os críptidos – algo que eu queria muito colocar o máximo possível -, e um desenvolvimento grande da narrativa – a parte do argumento, escrita por ele.
DG: Nem sempre concordamos com tudo, mas chegamos sempre a um consenso. Já é muito natural a esse ponto e o nosso workflow tem vindo sempre a melhorar. O processo é cada vez mais eficiente. Temos, agora, também um servidor NAS, o que acelerou bastante certas partes, como emendar erros, atualizar novos ficheiros, consultar as páginas através de qualquer dispositivo, etc.

NPS: Outra forma de combater o isolamento criativo é participar em atividades coletivas, algo que têm realizado, por exemplo, com o coletivo Tágide. Como tem sido essa experiência? E, de um modo geral, que vantagens julgam existir nesse tipo de atividades coletivas?
HG: Sem dúvida. Infelizmente, perdemos um bocado essa parte de participar em atividades coletivas, com o surgimento da pandemia. Isso não nos impede, sobretudo a mim, de continuar a colaborar com o coletivo Tágide, e de manter uma excelente relação com todos os integrantes, sobretudo o Daniel [Maia]. Acho que é fundamental para quem está a começar, sobretudo. A partilha de ideias com alguns dos grandes nomes do panorama nacional pode revelar-se fundamental. Para mim, revelou-se.
DG: No meu caso, participei no argumento de um fanzine chamado Klav, que foi lançado em julho do ano passado, mas, entretanto, já esgotou. É uma obra da artista Angie Antunes, que estuda em Belas-Artes no mesmo curso que o Henrique, e tem um estilo gráfico inspirado nos livros da professora Joana Afonso, que também deixou algumas palavras na contracapa. Estamos a pensar voltar a lançar esta história, mas com mais páginas – dando continuidade à narrativa – e já em formato de livro, ao invés de zine.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.