O 25 de Abril não é para todos – Amanda Baeza preterida de comemorar

O 25 de Abril não é para todos – Amanda Baeza preterida de comemorar

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Amanda Baeza preterida de comemorar o 25 de Abril.

A bem da clareza, devo declarar que está neste momento patente na Bedeteca da Amadora uma exposição dedicada à revista Umbra, co-organizada pela The Book Company e o artista Filipe Abranches, editor daquela publicação, na qual sou co-redactor e argumentista.

Fui, em algumas das edições do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, comissário de exposição, coordenador de catálogo, organizador de mesas-redondas, membro do júri, autor convidado, entre outros papéis. Estive à frente da programação da própria Bedeteca da Amadora também durante um ano civil. Algumas destas tarefas foram remuneradas.

Em relação à minha relação com Amanda Baeza, conheço-a pessoalmente desde pelo menos 2014, e fizemos uma pequena história de banda desenhada, publicada na revista croata Komikaze n.º 14, em 2015, intitulada “7 days of Awe”. Somos também colegas na escola de arte Ar.Co, na qual sou docente desde 2007.

Julgo, todavia, não existir nenhum conflito de interesses na divulgação desta situação, a qual, verificando-se a veracidade dos factos, me parece particularmente grave e que deveria dar azo a uma sua discussão pública, senão mesmo repúdio. Escrevo este artigo na qualidade de pessoa que se tem dedicado à circulação da banda desenhada na esfera pública, inclusive académica e artística, responsável por algumas acções expositivas, e até enquanto agente do seu ensino, autor, e pessoa que deseja a máxima fortuna e transparência nos certames de banda desenhada. Acima de tudo, enquanto cidadão livre de Portugal.

Durante o ano de 2021, o Município da Amadora, através dos meios do AmadoraBD, convidou 6 autores gráficos, associados à ilustração, banda desenhada e cartoon para criarem cartazes de campanha de sensibilização relativas à pandemia da Covid-19. Um conceito muito interessante de comunicação pública, de grande qualidade estética, e que reforça o papel que a Amadora deseja ter enquanto vanguarda da respeitabilidade e cidadanias artísticas destas disciplinas criativas.

Este ano, em que comemoramos o 49.º aniversário do 25 de Abril, o Município resolveu repetir a estratégia comunicativa. Assinale-se que este será o primeiro 25 de Abril a ser comemorado num período em que a democracia portuguesa tem finalmente um ano mais do que toda a duração do regime militar instituído em 1926, e depois continuado pelo Estado Novo. Para cumprir esse propósito, a organização convidou um grupo de cinco autoras a criarem imagens relativas a essa efeméride, para depois serem instaladas pela cidade. De acordo com o site da própria Câmara, “’25 de Abril fora de portas!’ é o título da exposição de outdoors que irá levar ilustrações originais de 5 ilustradoras portuguesas – Cristina Sampaio, Eduarda Lima, Filipa Beleza, Marta Nunes e Susa Monteiro – a vários locais da Amadora, celebrando a liberdade e contribuindo para afirmar a cidade como a capital nacional da banda desenhada”.

O que esta nota não indica é ter-se igualmente estendido o convite à autora Amanda Baeza, o qual, ao que podemos apurar, foi retirado por razões espúrias.

Amanda Baeza é autora de variadíssimos trabalhos, de uma esfera independente da banda desenhada, com vários títulos publicados internacionalmente, e cuja antologia, Bruma, foi publicada em português pela editora Chili Com Carne, em 2017. Amanda Baeza foi alvo de atenção particular da parte do AmadoraBD pelo menos em duas ocasiões. Em 2014, o volume colectivo Zona de Desconforto ganhou o Melhor Álbum Português, o que a levou a participar da exposição dedicada a esse mesmo título. E, tendo ganho ela mesma o Prémio Nacional de Banda Desenhada para Melhor Desenho em Álbum Português em 2017, na edição seguinte, em 2018, foi alvo de uma exposição a solo.

Entendemos, desta maneira, que se tratará de um nome conhecido da organização.

A autora alega ter sido contactada no dia 9 de Março, em que lhe terá sido estendido o convite à participação. Presumimos que essa comunicação indicava as condições do mesmo, inclusive datas de entrega de trabalho, requisitos técnicos, e valores. Baeza terá respondido no dia seguinte, dia 10, uma Sexta-feira, mostrando interesse em participar neste projecto, tendo recebido de imediato, no mesmo dia, a minuta a preencher assim como a lista de documentação solicitada. Neste tipo de projectos e trabalhos, é usualmente pedido que o contratado emita declarações de não-dívidas à Segurança Social e Finanças, condição sine qua non não pode haver qualquer auferimento de verbas públicas. Amanda Baeza terá entregue esta documentação, conforme e regularizada. Estes documentos foram enviados a quem de direito no dia 16 de Março, ou seja, uma semana precisa após o convite, juntamente com a documentação de identificação da artista.

No dia 17, Amanda Baeza terá recebido uma comunicação por escrito em que vê a sua participação rejeitada.

A razão: ordens superiores terão indicado que se pretendia estender o convite tão-somente a indivíduos de naturalidade portuguesa, sendo o 25 de Abril uma data portuguesa.

Algumas das autoras participantes na criação destes cartazes, as quais foram contactadas para efeitos deste artigo, confirmaram ter recebido o convite nas mesmas datas. A deadline da entrega dos trabalhos terá sido dia 31 de Março. Baeza terá dado início a alguns esboços preparatórios da sua proposta mas não chegou sequer a mostrá-los, dada a recusa de dia 17. Pelo menos em dois casos das convidadas, no momento do contacto, dia 31 de Março, os projectos não haviam sido entregues. Isto é uma informação importante, como verificaremos.

A razão pela qual sabemos desta situação deve-se a dois momentos. Em primeiro lugar, a autora colocou um post no seu perfil de Instagram, por volta de dia 27 de Março, com uma curta banda desenhada que criou de propósito – e que pode ser consultada aqui mesmo no Bandas Desenhadas –  em que explora questões da sua própria identidade, da crise despertada por este questionamento, tematizando uma oposição entre um “nós” e uma “alteridade” quase absoluta, em que quem diz “nós” não apenas se identifica como detentor total da identidade a que corresponderia esse pronome colectivo, como é quem decide quem nele se poderá inscrever e quem se excluir, sem uma verdadeira participação, diálogo ou possibilidade de negociação da parte daquele considerado “outro”. Essa banda desenhada era acompanhada, textualmente, pela descrição da situação indicada acima.

Num segundo momento, a agência noticiosa Lusa lançou esta notícia dia 29, prevendo ser digna de atenção numa esfera pública mais alargada. Contém declarações da autora, igualmente. Somos informados que a agência Lusa procurou informações junto à organização do AmadoraBD, mas não obteve resposta. Acresce que, uma vez que a Lusa entrou num período de greve durante 3 dias, não pôde verificar-se um imediato follow-up da mesma situação durante o fim-de-semana.

Sendo o Festival um certame tão aberto e integrador de várias tendências da banda desenhada, tentando representar, dentro da medida do possível, vários sectores criativos e editoriais, géneros, estilos, de formas mais ou menos conseguidas e alvo, muitas vezes, de debates passionais pelos seus participantes e admiradores, a razão desse revés apenas se justificaria por um motivo maior. Mais, tendo em conta que um trabalho desta natureza seria remunerado, num panorama que sabemos ser de extrema dificuldade nesta área, é igualmente algo significativo para a autora. Apesar de não indicarmos a informação do valor neste artigo, ela é pública, e eis que tocamos novamente num aspecto fulcral desta questão, ao qual regressarei.

A razão foi, portanto, alegadamente, o facto da autora não ser portuguesa. E repare-se, de novo, como no texto de apresentação dos cartazes no site da Amadora, está indicado que as participantes são “ilustradoras portuguesas” (meu sublinhado), assinalando a importância de o destacar.

Amanda Baeza nasceu no dia de Natal, em Lisboa, em 1990. O seu pai é um cidadão chileno, a sua mãe, portuguesa. Logo no primeiro ano de idade, mudou-se para o Chile (Viña Del Mal, depois Valparaíso), tendo regressado a Portugal por volta dos 10 anos, com os seus pais e irmãos, criando com estes uma magnífica série de fanzines/objectos intitulados Spoqui, que lhe angariaram de imediato alguma atenção crítica.

Amanda Baeza é, então, detentora de dupla nacionalidade: é chilena-portuguesa. Ou, por outras palavras, ela é chilena e é portuguesa. O hífen em “chilena-portuguesa” (ou outro termo semelhante) é um sinal diacrítico para compor palavras, não um sinal matemático de subtracção ou negação.

A dupla nacionalidade não é tão-somente um descritivo impressionista ou de aproximação, que tenta explicar uma identidade com um grau ou dois de “alteridade” face a uma outra que é totalmente “clara” ou normativa. A dupla nacionalidade, ou dupla cidadania, é um direito constitucional, inalienável, é uma realidade legal. É fruto de esforços e trabalhos complexos a nível diplomático, legal, e outros, nas esferas mais altas da governabilidade de ambos os países envolvidos. São, por conseguinte, resultado de acordos bilaterais, e conferem ao indivíduo plena cidadania em cada um dos países respectivos. Existirão dimensões e dinâmicas bem diversas entre as nações, por exemplo, caso ambas sejam membros da União Europeia, ou se o outro país que não Portugal esteja noutras esferas geopolíticas. Existirão, igualmente, direitos distintos em cada país face à sua específica realidade que não tem validade no outro país (apenas a título de exemplo, serviço militar obrigatório, acesso a um serviço nacional de saúde gratuito, escolaridades, etc.). Todavia, a dimensão mais importante de reter é que, em relação a cada país, esse indivíduo tem plena cidadania. Ou seja, é um cidadão com todos os direitos inerentes aos cidadãos desse país.

Nestes assuntos, preside a Lei da Nacionalidade, ou Lei 37/81 de 3 de Outubro, destacando-se o artigo 27.º, cujo sub-título é “conflitos de nacionalidade portuguesa e estrangeira”, na secção do “Título III. Conflitos de leis sobre a nacionalidade”. Pedimos paciência, pois citaremos o artigo na íntegra, que convém escrutinar:

“Se alguém tiver duas ou mais nacionalidades e uma delas for portuguesa, só esta releva face à lei portuguesa”.

É tudo.

Em suma, face à lei portuguesa, detentores de dupla nacionalidade são considerados cidadãos nacionais, com todos os direitos territorialmente aplicáveis. É o caso de Amanda Baeza. Cidadã portuguesa.

Naturalmente, poder-se-á interrogar aqui que significa tudo isto, e se é apenas o que “Amanda Baeza disse”….

Em vários momentos, utilizámos a palavra público. Uma câmara, e quaisquer acções que cumpram, faz parte do serviço público e, portanto, são alvo do seu escrutínio, também público. É o que procuramos aqui.

A deputada da Assembleia Municipal de Amadora, eleita pelo Bloco de Esquerda, Ackssana Rodrigues da Silva, interpelou directamente a Presidente da Câmara, Carla Maria Nunes Tavares, durante a 2.ª Sessão Extraordinária da Assembleia, dia 30 de Março, a propósito deste assunto, após se ter apercebido da situação via LUSA. A intervenção encontra-se disponível em vídeo, no site da Câmara, com a intervenção da deputada Silva iniciando-se aos 25′, e a resposta da Presidente aos 39’40”.

A Presidente, nessa sua resposta à deputada, enquadra o trabalho do AmadoraBD, as ocasiões em que houve uma participação destacada da artista mas remete a questão do seu afastamento alegando que, passo a citar, “no momento em que apresentou a sua inscrição, o processo já estava fechado”.

Não havendo a possibilidade de confirmar, não se compreende se por “inscrição” se referirá a “responder ao convite”, e se o processo “fechado” se associaria à deadline dos trabalhos a entregar, ou a outra realidade. Nenhuma das artistas participantes fez “inscrição”, tão-somente aceitaram o convite e trabalharam para ele.

Há, nitidamente, uma versão distinta da situação entre aquilo que é alegado pela artista Amanda Baeza e as explicações da Sra. Presidente.

A deputada informou ainda que apresentou um requerimento à Assembleia Municipal na Segunda-feira, dia 3 de Abril, co-assinado por Miguel Areosa Feio.

A directora do AmadoraBD, Catarina Valente, também contactada por mim na tarde desse dia 31, remeteu quaisquer esclarecimentos ao Gabinete de Imprensa da Câmara, sem mais declarações. Enviámos um pedido de esclarecimento através dos mecanismos digitais desta plataforma, assim como email a esse departamento e ao de Relações Públicas. Tendo obtido confirmação da sua recepção, até à saída deste artigo, não obtivémos qualquer resposta.

O direito de resposta da Câmara Municipal da Amadora a esta matéria está assegurado, naturalmente.

Por razões óbvias e legais, a artista Amanda Baeza não partilhou quaisquer comunicações privadas tidas com o pessoal da Câmara com terceiros, inclusive o escritor destas linhas. Está, parece-nos, no direito de apresentar a sua versão dos factos, sobretudo depois de os ter tornado públicos via redes sociais. Todavia, ela quer deixar claro que tem em sua posse todas essas comunicações, onde se enquadram as informações partilhadas.

É particularmente triste que esta situação se verifique, caso se confirme a veracidade dos factos, em relação à comemoração do 25 de Abril. É verdade que uma situação destas será inadmissível, sem tergiversações, em qualquer circunstância, já que se trata de uma discriminação insustentável não apenas ética, política, cultural como legalmente. Está no poder de uma instituição fazer convites e voltar atrás? Claro que sim. Poderia até ser visto como deselegante, mas por vezes as forças das circunstâncias a isso obrigam, e todos nós já nos vimos envolvidos em situações quejandas, ou até mesmo fomos responsáveis por elas. Todavia, não nos parece que seja essa a questão aqui: está a de alegadamente ter empregue um argumento insustentável e reprovável, a mais que um título. E depois, agravando-se, não haver hombridade em enfrentar essa mesma decisão de modo transparente.

A menos que Amanda Baeza não esteja a ser objectiva na descrição das comunicações havidas.

O que torna toda a situação ainda mais lesiva é estar associada à data em que se assinala a reconquista de um regime democrático, e para mais cuja origem se encontra na luta anticolonialista contra o regime português, uma guerra que ainda hoje exerce a sua ferida e traumas, e cuja mortandade representa para toda uma geração de jovens portugueses e africanos algo de inultrapassável e ainda por, em larga medida, sarar.

O 25 de Abril não é uma data de algo passado, mas de um processo contínuo.

O 25 de Abril é uma data que comemora todos. Salvos os que se queiram auto-excluir dessa comemoração: se não se estiver aberto à participação democrática e solidariedade de todos, independentemente de nacionalidade, idade, classe social e económica, inscrição política ou cultural, género, sexo, sexualidade, capacidades, saúde, então não se estará a comemorá-lo correctamente.

O 25 de Abril pode assinalar uma data de um evento que teve lugar em Portugal, mas é uma comemoração transnacional, e seguramente que muitos entenderão o 25 de Abril como uma data africana, anticolonial, feminista, internacionalista, de revolução cultural, e com tantas outras facetas. E nem queremos entrar no diálogo possível político ao pensar na relação com o Chile…

A esfera da banda desenhada deve estar consciente desta situação, pois o seu prestígio cultural passa igualmente por tomadas de posição, mesmo que desconfortáveis face a poderes instituídos. Não basta reagir nas redes sociais, e há uma responsabilidade acrescida àqueles que se prezam enquanto divulgadores e defensores desta disciplina face à produção artística nacional e internacional e, também, ao próprio princípio de cidadania.

Seja qual for a justificação, que esperamos seja célere e clara, estamos em crer estarmos perante uma situação muito infeliz, e que conspurca o nome da própria arte, assim como de uma comemoração desta data, que expressa, para mim, uma sempiterna luta por democratizar a democracia.

amanda baeza

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