Ana Pessoa: “Em Bruxelas, a BD não é um nicho”

Ana Pessoa: “Em Bruxelas, a BD não é um nicho”

ana pessoa

Entrevista a Ana Pessoa a propósito do lançamento da BD Mar Negro.

Nuno Pereira de Sousa: Que banda desenhada leste nos teus anos formativos? E hoje em dia?
Ana Pessoa: Durante a infância e adolescência lia, entre muitas outras coisas, livros de tiras – as comic strips – como a Mafalda, os Peanuts, o Calvin & Hobbes. Mas à banda desenhada propriamente dita cheguei tarde, já adulta, em Bruxelas. Das primeiras coisas que li foi Le Sommeil du monstre do Enki Bilal. A história e os desenhos impressionaram-me muitíssimo. O Black Hole do Charles Burns foi outra das leituras marcantes. Hoje em dia, gosto muito de vários autores contemporâneos como o Brecht Evens, a Julie Delporte, o Bastien Vivès, o Frederik Peeters e também as autoras que integram comigo a coleção juvenil [Dois Passos e Um Salto] do Planeta Tangerina: Chloé Wary, Joana Estrela, Jillian e Mariko Tamaki.

Nuno Pereira de Sousa: Desvio foi a tua primeira banda desenhada, também em coautoria com o Bernardo P. Carvalho. Como é trabalhar com o Bernardo?
Ana Pessoa: É ótimo! É um autor em constante renovação. Nunca se repete, nunca cai em fórmulas, por isso é sempre uma surpresa trabalhar com ele. Além disso, sei que posso contar sempre com a sua intuição e com a sua impressionante capacidade de trabalho. Ou seja, quando o Bernardo se entusiasma com um projeto, sei que não vai descansar enquanto ele não estiver concluído. Isso é exatamente o que se pretende, sobretudo quando falamos de projetos tão exigentes como os de banda desenhada – essa vontade e capacidade de concretização.

Nuno Pereira de Sousa: De todo o trabalho que envolve a escrita de um argumento para banda desenhada, o que julgas que é o mais difícil para uma escritora com já vários livros publicados e premiados nos quais controlava toda a narrativa, como é o teu caso?
Ana Pessoa: A linguagem visual é desafiante. Estou mais habituada ao trabalho puramente linguístico, a narrar uma história através das palavras, a explorar as frases, a procurar a sílaba certa. Mas narrar uma história para dar a conhecer uma sequência visual é completamente diferente. É uma linguagem muito mais seca e descritiva, nada literária. Por exemplo, se as personagens trabalham num café, é preciso descrever os seus movimentos enquanto falam uma com a outra. Não basta dizer que uma delas está a tirar cafés. Eu, pelo menos, tenho necessidade de ser mais específica. Vou escrever algo como: “Inês roda o manípulo da máquina do café, sacode o manípulo, enche o manípulo de café, volta a colocar manípulo na máquina.” Este tipo de coisa.

Nuno Pereira de Sousa: Na escrita do argumento, a que grau de detalhe vais na composição das cenas e o que deixas para ser o Bernardo a decidir?
Ana Pessoa: O meu argumento é bastante pormenorizado, descrevo todos os movimentos da personagem, o que vê, o que diz, o que faz. Mas não dou indicações em relação às vinhetas. Ou seja, é o Bernardo que define o ritmo da história. Um exemplo – se eu descrevo uma rapariga a sair de casa de auscultadores nos ouvidos numa manhã de nevoeiro, cabe depois ao Bernardo definir o número de vinhetas e de páginas dessa cena. Exceto algumas situações em que especifiquei o “foco”, é também ele que define o plano, ou seja, se vemos um grande plano dos auscultadores ou a personagem ao longe.

Nuno Pereira de Sousa: Mar Negro aborda novamente o tema da identidade, tal como Desvio, mas a estória é tão díspar que não será tal uma simples consequência das idades dos protagonistas estarem no final da adolescência e no início da vida adulta?
Ana Pessoa: Sim, é verdade. O tema da identidade poderá ser o tema transversal a todos os meus livros. Mas pergunto-me se a literatura em geral não lida sempre com esse tema, se a condição humana não terá precisamente a ver com essa necessidade de encontrarmos o nosso lugar no mundo. Quando penso em clássicos como a Anna Karenina ou a Odisseia, mas também quando penso em livros recentíssimos como Um cão no meio do caminho, da Isabela Figueiredo, ou A história de Roma, da Joana Bértholo, penso que a questão da identidade é sempre central.

NPS: Na sinopse do livro, afirma-se que os diálogos são longos. Após uma primeira leitura, não parece. Tal deve-se ao trabalho do Bernardo ou o estagiário que escreveu isso na contracapa não está habituado a ler (risos)?
AP: Os diálogos são longos, sim. Não parecem longos, porque são no geral diálogos de falas curtas e rápida – pergunta, resposta; provocação, reação; argumento e contra-argumento. Logo no início, por exemplo, o diálogo com o fornecedor de gelados ocupa mais de sete duplas e nem é um dos diálogos mais importantes da história. Foi um dos principais imbróglios na fase final de edição. Demo-nos conta de que havia diálogos que ocupavam imensas páginas. Cortámos mesmo muita coisa, páginas e mais páginas. E eu acabei por reescrever muitos diálogos na tentativa de os sintetizar. Essa é também outra dificuldade muito específica da banda desenhada: a necessidade de sintetizar, de conseguir resumir uma ideia num balão. Também por isso, todas as interações são muito intensas. A surpresa, a zanga, a indignação, a reconciliação têm de surgir rapidamente. Não há muito espaço para crescendos. Ainda assim, não se podem introduzir emoções à bruta. Não é fácil encontrar um equilíbrio entre a síntese e a progressão.

mar negro

NPS: Fizeste questão de mudar a tua biografia na obra Mar Negro para contares aos leitores que, tal como a Inês, aos 16 anos trabalhaste num café de praia, onde cortaste o dedo na máquina de fiambre. Que paralelos existem mais entre a Inês e a Ana de 16 anos?
AP: Há umas semelhanças, mas não muitas. Tal como a Inês deste livro, trabalhei num café da praia, precisamente atrás do balcão. E tal como a Inês, deixo-me facilmente consumir pela vida profissional.
Estas biografias – minha e do Bernardo – que nos aproximam das personagens é uma brincadeira que fazemos desde o primeiro livro. A única exceção foi mesmo o Desvio, que não inclui notas biográficas. Em todos os outros, fomos buscar coisas que nos aproximam dos protagonistas. Pareceu-me relevante trazer para esta novela o mundo do trabalho, que está tão presente no nosso dia-a-dia e tão ausente da ficção. A rotina de trabalho, o brio, o desleixo, as relações profissionais, o cansaço, a precariedade. O livro não se foca nestes temas, mas também fala sobre eles. De resto, acho que não há grandes semelhanças entre mim e a Inês. Eu passava a vida apaixonada e nunca fui uma pessoa misteriosa ou reservada. Pelo contrário. Às tantas, tenho mais em comum com o JP!

NPS: O sorvete Mar Vermelho surge como uma segunda escolha, mas, mais tarde, outro tipo de segundas escolhas parecem ser quase assuntos tabu quando evocados nos diálogos dos personagens. São tópicos de abordagem difícil na vida real?
AP: A certa altura o livro aborda a questão da “segunda escolha” no amor. Por diversos motivos, as personagens do Mar Negro parecem estar em relações amorosas de “segunda”, e não de primeira escolha. No amor, ninguém quer estar em segundo lugar. É socialmente inaceitável. É difícil falar sobre isso, precisamente porque é difícil reconhecer que somos essa segunda escolha para alguém e também admitir que um parceiro ou parceira é a nossa segunda escolha.

NPS: É um lugar comum referir-se que nos países francófonos a leitura da banda desenhada está bastante mais difundida do que em Portugal, onde é frequentemente encarada como um nicho. Que perceção tens sobre esta questão?
AP: Vivo em Bruxelas desde 2007 e a minha aproximação à banda desenhada deu-se justamente devido à omnipresença da banda desenhada nas livrarias. Há livrarias especializadas em banda desenhada, há muitos festivais e feiras de banda desenhada, há mesmo um movimento forte aqui. Não é de todo um nicho. Um dia destes queria ir a uma apresentação da Julie Delporte e não consegui porque a sessão estava esgotada, era preciso reservar lugar. Liguei para a livraria antes da hora – disseram-me que nem valeria a pena aparecer. Acho que em Portugal não acontece isto.

NPS: Do que mais sentes falta de Portugal? E, quando regressas cá, do que mais sentes falta de Bruxelas?
AP: Sinto muita falta das minhas pessoas – a família, os amigos – e também as pessoas que fazem parte deste mundo dos livros – autores, editores, professores, livreiros. Sinto falta do sol e do mar, claro. E do café! Quando estou aí, estou sempre ocupada a apanhar sol e a estar com as minhas pessoas, por isso nunca sinto saudades de Bruxelas. Mas, se me ausentasse muito tempo, ia sentir falta das minhas rotinas – o meu núcleo familiar (somos 5!), a minha bicicleta, a minha rua, o bosque. E as livrarias!

NPS: O que podes revelar aos nossos leitores sobre as tuas próximas obras na banda desenhada e não só?
AP: Tenho vários projetos pela frente, mas nenhum é de banda desenhada! Entre eles, um livro de não ficção infantil e uma peça de teatro.

Deixa um comentário