Filipa Beleza: “A BD tem espaço e público para muitas e diversas vozes criativas”

Filipa Beleza: “A BD tem espaço e público para muitas e diversas vozes criativas”

entalados

Entrevista a Filipa Beleza, a propósito do lançamento de Entalados.

Nuno Pereira de Sousa: O teu livro Somos (Mesmo) Uma Merda a Crescer (Suma de Letras, 2021) apresentava 6 capítulos, cada um dos quais com um texto satírico em prosa e diversos cartoons alusivos a cada um dos temas abordados. Quais as razões para não recorreres concomitantemente à prosa em Entalados?
Filipa Beleza: A principal razão foi o contexto em que Entalados surgiu, que foi a partir da minha participação no projeto Comic Art Europe, o qual pretende apoiar e divulgar o trabalho de artistas de banda desenhada europeus. Como o trabalho dos artistas selecionados seria apresentado através de uma exposição coletiva, pareceu-me que a maneira mais eficaz de abordar o tema que elegi seria criar imagens que tanto pudessem resultar individualmente como em conjunto e que permitissem uma leitura rápida por parte do público. Desde o início trabalhei a pensar que gostaria que o projeto pudesse passar a livro caso tivesse essa oportunidade e que, se tal acontecesse, este seria constituído inteiramente por cartoons. Uma parte dos cartoons que fiz integrou a exposição “Visions of Tomorrow” e agora, através da Iguana (Penguin Livros), pude concretizar o objetivo de ver o projeto completo ser publicado sob a forma de livro!

Nuno Pereira de Sousa: O teu livro anterior foi também publicado em Espanha. Em que diferiram as reações do público e da crítica especializada entre os dois países?
Filipa Beleza: Não notei diferença na reação nem do público, nem da crítica, entre Portugal e Espanha. Creio que por ter falado de uma experiência tão transversal, e pelas similaridades entre os dois países, muitos leitores se conseguiram identificar de uma maneira ou de outra com o conteúdo do livro, ou pelo menos com algum capítulo em particular.

Nuno Pereira de Sousa: Como surgiu a temática para este Entalados?
Filipa Beleza: O tema geral da primeira edição do projecto Comic Art Europe foi “Visions of Tomorrow”, e a partir daí achei que fazia sentido trabalhar sobre o meio ambiente e as alterações climáticas. Queria abordar o tema com humor e desde a perspetiva da nossa vida quotidiana, por um lado porque trabalho bastante nessa linha e por outro porque me pareceu uma maneira de falar sobre algo que é sério e urgente sem que quem leia o livro sinta que está ser repreendido ou a levar um sermão, mas antes que consiga reconhecer-se a si, a algum familiar ou amigo, rir-se, e que sinta assim vontade de o partilhar. Pareceu-me uma maneira simpática de estimular uma reflexão e conversa sobre o ambiente dentro dos círculos sociais e familiares dos leitores.

Nuno Pereira de Sousa: No livro anterior tinhas abordado temáticas como o amor, ansiedade, estilos de vida, trabalho, redes sociais e crescer, frequentemente numa perspetiva relacionada com crises existenciais. Com este livro, expões menos a tua vida privada. Foi algo consciente?
Filipa Beleza: Pelo contexto em que Entalados surgiu e pela sua temática, pareceu-me que fazia mais sentido que o livro fosse assim. E em termos criativos é sempre bom ter a possibilidade de não ter de me cingir a uma única abordagem.

filipa beleza

Nuno Pereira de Sousa: A ineficácia da maioria de muitas das políticas ambientais previamente aplicadas e a ausência de aplicação de outras eventualmente mais eficazes é algo que te angustia? Sentes-te realmente “entalada”?
Filipa Beleza: Sim, por isso escolhi trabalhar sobre este tema e me esforcei por criar algo que espero que os leitores queriam partilhar com outras pessoas. Foi também essa a razão pela qual trabalhei com cartoons – tal como em Somos (Mesmo) Uma Merda a Crescer abordei questões como a ansiedade, a precariedade e os desgostos amorosos através da sátira e senti que vários leitores tiveram uma reação positiva ao reverem os seus próprios sentimentos e experiências no livro, em Entalados quis tratar esta preocupação que, tal como eu, muitas outras pessoas sentem, de uma maneira com a qual se possam identificar mas que também as possa fazer sorrir. 

NPS: Com décadas de educação ambiental no nosso país, porque julgas que cada geração pensa que pouco ou nada foi feito anteriormente e que há tanto por fazer?
FB: Quando penso nas gerações anteriores à minha não penso que não quiseram saber do ambiente. Na verdade, vejo à minha volta muitas pessoas de todas as idades preocupadas com o planeta. Acho que é antes uma questão de termos cada vez mais acesso a informação sobre o tema, o que faz com que felizmente se fale mais sobre isso e com que haja mais pessoas interessadas e envolvidas na causa ambiental.

NPS: O marketing utiliza todos os recursos disponíveis e mais alguns, incluindo recorrer a ideias sobre um planeta sustentável. Sentes-te frequentemente manipulada e alvo da hipocrisia do marketing?
FB: Sinto-me frequentemente “entalada”! Se por um lado tento estar cada vez mais alerta e preocupada com o meu impacto no futuro do planeta, tenho também consciência de que há muitas coisas que me continuam a passar ao lado.

NPS: És adepta da ilustração digital. Que software e hardware utilizas?
FB: Na verdade, quase todos os meus desenhos começam a lápis e em ponto muito, muito pequeno! Começo com um esboço muito simples para determinar a forma, movimento e composição de uma maneira geral e depois uso papel vegetal para ter uma versão mais clara do desenho. Foi assim que comecei a desenhar há muitos anos e continuo a manter essa prática. A sensação de trabalhar diretamente com lápis no papel dá-me muita satisfação e ao mesmo tempo a sensação de que as ideias fluem mais facilmente. Depois tiro foto ao esboço e passo para a versão digital – ultimamente tenho usado muito o Procreate no iPad.

the great british bump off 3 filipa beleza

NPS: Ilustraste recentemente uma capa alternativa da revista de banda desenhada The Great British Bump-Off #3 para a Dark Horse Comics. Como surgiu essa oportunidade? Já tiveste feedback sobre a mesma?
FB: Receber a proposta foi uma surpresa mas sobretudo uma grande alegria para mim. Não só por ter tido a oportunidade de ilustrar para a Dark Horse e porque a história e a arte de The Great British Bump-Off são muito divertidas mas também porque sempre gostei muito da ideia das capas alternativas e de como enriquecem e dinamizam um projeto. Alguns cartoons de Entalados fizeram parte da exposição “Visions of Tomorrow”, que esteve no Lyon BD Festival e no Lakes International Comic Art Festival em 2022, e creio que foi neste último que o John Allison ficou a conhecer o meu trabalho. Quanto ao feedback, The Great British Bump-Off #3 vai sair em junho deste ano, e espero que os leitores da série considerem que estive à altura do desafio!

NPS: Falando em BD, está nos teus planos vir a elaborar um livro de banda desenhada que não de cartoons?
FB: Sem dúvida. Cresci com a banda desenhada sempre presente na minha vida e, tal como gosto de ler diferentes tipos de livros, também dou por mim a ter vontade de criar coisas diferentes. Acho que depois do tipo de trabalho que desenvolvi em Somos (Mesmo) Uma Merda a Crescer e Entalados, seria um desafio muito divertido criar um livro de banda desenhada, no sentido mais convencional da mesma.

NPS: Com base na tua experiência pessoal, acreditas que quer na área da ilustração quer na dos cartoons, ainda há muito que fazer para existir equidade de oportunidades para as artistas portuguesas? E julgas existir diferenças quanto a tal no mercado nacional e no internacional?
FB: Creio que esta não é uma questão exclusiva da área da ilustração ou dos cartoons. Em geral, ainda temos um longo caminho a percorrer para que se alcance a equidade, e não acho que seja apenas a nível nacional. Por outro lado, fico feliz por ver cada vez mais autoras e artistas a serem publicadas e reconhecidas pelo seu trabalho. Acredito que a ilustração e a banda desenhada têm espaço e público para muitas e diversas vozes criativas, e que são áreas que só têm a beneficiar com a igualdade de oportunidades.

NPS: Fala-nos dos projetos em que te encontras a trabalhar atualmente.
FB: De momento só posso dizer que estou a trabalhar em algo com que me estou a divertir muito e que mal posso esperar por partilhar! 

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