António Jorge Gonçalves: “Tenho uma visão alargada daquilo que cabe na Banda Desenhada”

António Jorge Gonçalves: “Tenho uma visão alargada daquilo que cabe na Banda Desenhada”

welcome to paradise antónio jorge gonçalves

Entrevista a António Jorge Gonçalves, a propósito do lançamento de Welcome to Paradise.

Nuno Pereira de Sousa: Como surgiu a ideia para o livro Welcome to Paradise?
António Jorge Gonçalves: Welcome to Paradise recolhe uma seleção dos desenhos que andei a fazer de turistas em Lisboa a partir de 2019. Vivo no centro histórico da cidade há 30 anos e desenhar o que vejo nas ruas faz parte dos meus hábitos. A quantidade de turistas aumentou exponencialmente nos últimos anos, isso está a reconfigurar a cidade, e eu quis registá-lo no papel. O título do livro é a transcrição direta da frase que ouvi de um condutor de tuk-tuk – ao chegar ao Miradouro da Senhora do Monte, na Graça, e deparar com dezenas de outros tuk-tuks estacionados e uma multidão apinhada no miradouro, o condutor disse para os seus turistas “this is the best view in Lisbon, welcome to paradise!”. Achei que esta ironia seria um título mais do que adequado para o livro.

Nuno Pereira de Sousa: Para desenhar as cenas ilustradas, frequentaste propositadamente mais locais frequentemente visitados por turistas do que farias habitualmente?
António Jorge Gonçalves: Claro. Senti-me como um jornalista da National Geographic em busca do habitat e modos de vida do seu objeto de estudo.

Nuno Pereira de Sousa: Optaste por desenhar no local ou capturaste as cenas em registo fotográfico para desenhar posteriormente?
António Jorge Gonçalves: Desenhei muito no local, mas também usei o telemóvel para fixar certos aspetos que dificilmente desenharia no local – por exemplo, pessoas em movimento, pontos de vista no meio da rua… O telemóvel é, para mim, um bloco de notas fotográficas.

Nuno Pereira de Sousa: Que materiais utilizaste para o ilustrar?
António Jorge Gonçalves: Marcadores Uni-Ball e cadernos de vários tipos, maioritariamente uns que foram produzidos pela EGEAC [uma empresa municipal de Lisboa, Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural] e que me são oferecidos pelos teatros ou equipamentos culturais onde faço espetáculos – na minha outra metade de vida profissional, os palcos. Gosto de usar materiais e cadernos corriqueiros nestes registos diários, retira-lhes importância e ambição.

welcome to paradise antónio jorge gonçalves

NPS: A turistificação, para além do seu monofuncionalismo mais dependente e sensível à procura turística motivadas por causas externas, tem consequências nefastas como o desvirtuamento do espaço público, a superlotação de transportes públicos, o “overtourism”, problemas ambientais, a substituição do comércio tradicional por ofertas dirigidas a turistas ou a substituição do alojamento clássico para o destinado aos turistas, culminando na gentrificação turística. Por outro lado, há uma aposta financeira forte de Lisboa no seu turismo urbano. Parece-te ter sido ultrapassada a possibilidade de um ponto de equilíbrio?
AJG: Em Portugal, temos uma certa obsessão pelo “equilíbrio”, odiamos conflito, preferimos o mínimo de “ondas”. Mas a verdade é que as cidades – as capitais, sobretudo – são, por natureza, lugares de tensão, de ocupação do espaço público. O novo constrói-se sobre a destruição do velho, a modernidade luta com a “tradição”. O turismo cresceu exponencialmente desde que o país ameaçou bancarrota e tem sido uma ferramenta económica de sobrevivência, tanto para grupos económicos como para particulares. A gentrificação não se deve só ao turismo, é um fenómeno mais alargado a que nenhum lugar do mundo pode escapar – quando aparece um estrangeiro com moeda forte num país economicamente inferior, o resultado é previsível. Não faz sentido responsabilizar turistas e estrangeiros pelo que se está a passar em Lisboa. Recordo, por exemplo, que há 20 anos, quando andava à procura de casa na baixa lisboeta, percebi que grande parte dos prédios pertencia a pessoas de idade que não os vendiam nem alugavam, à espera de um dia os venderem integralmente, sem inquilinos. Este tipo de atitude talvez explique melhor onde chegamos do que os cruzeiros a abarrotar de turistas.

NPS: No booktrailer, utilizas uma música do brasileiro Luca Argel. As duas obras complementam-se?
AJG: Sou parceiro criativo do Luca, faço espetáculos com ele, e é normal estender essas colaborações a outros projetos. Aquilo que gosto muito nesta música dele é esse jeito humorado que a cultura brasileira tem para abordar qualquer assunto. Rir e dançar para não chorar, é uma estratégia brilhante.

NPS: Por vezes, este livro deixa de ser o habitual diário gráfico para uma ou outra página se tornar um cartoon (p.e., o Padrão dos Descobrimentos). É a marca do cartoonista?
AJG: Talvez. Também há marcas do performer, aqui e ali. Os meus heterónimos criativos gostam de se misturar.

NPS: Isso levanta-nos questões sobre a realidade/veracidade do que é publicado num diário gráfico vs. a utilização da metáfora visual que se deseja transmitir. Qual a tua posição sobre tal?
AJG: O poeta é um fingidor – já dizia o Pessoa. Na arte, não há necessidade de “verdade”, ou dito de outra forma, a verdade na arte define-se através de uma mentira que é apelativa aos sentidos, à emoção, à inteligência .

desenhar no escuro antónio jorge gonçalves

NPS: Entretanto, até 4 de junho de 2023, está patente na 4.ª edição do Barreiro IlustraBD uma exposição tua, referente à obra Desenhar no Escuro (2021). Fala-nos um pouco desse trabalho e o que pode ser visualizado nessa exposição.
AJG: A exposição dá a ver ampliações de grande formato – impressas em UV sobre papel, uma tecnologia que permite resultados incríveis, impressões que se assemelham muito a originais – de alguns dos desenhos a lápis branco sobre folhas de caderno pretas que andei a fazer nas ruas durante a pandemia e respetivos confinamentos. As ampliações permitem ao visitante observar em detalhe esta técnica de desenho. Por outro lado, a inclusão na exposição dos cadernos originais e de um filme com comentários meus sobre os cadernos, fornece muitas chaves para entender o que esteve por detrás destes desenhos.

NPS: O que te levou a autoeditar Desenhar no Escuro, ao invés de ser editada por outrem, como é habitual nos diferentes livros que assinaste? E foi uma boa experiência?
Com Desenhar no Escuro, dei início à prática de autoedições, que está para ficar. A tiragem – numerada e assinada – esgotou rapidamente, só com a minha venda direta online, e o livro que lhe seguiu, Vigia, em 2002, também. Estas edições restritas permitem-me publicar livros com materiais e técnicas de impressão de grande qualidade, criando livros-objeto de preço mais elevado e por isso menos adequados ao espaço de uma livraria onde os preços têm de competir numa base industrial. Vendo estes livros a quem está interessado num objecto artístico único. Tem-me dado muita alegria poder fazê-los e o contacto direto com as pessoas que mos compram também tem sido muito interessante, na relação autor-leitor.

vigia antónio jorge gonçalves

NPS: O que se pode esperar da masterclass que vais dar no dia 28 de maio no Barreiro IlustraBD, no âmbito de Desenhar no Escuro?
AJG: Irei falar sobre a luz na arte, e como ela constitui um tema constante na cultura humana desde o paleolítico até aos nossos dias, na pintura, no cinema, na música, no teatro. Procuro, com isto, dar um contexto aos meus desenhos do escuro, integrando-os numa longa linhagem de artistas. Depois – para quem quiser – haverá espaço para os participantes fazerem desenhos a lápis branco sobre cartolina preta.

NPS: Após a edição dos livros de banda desenhada A Minha Casa Não Tem Dentro (Abysmo, 2017) e Vau (Ao Norte, 2022), os leitores de BD estão curiosos para saber se e quando vai haver uma nova obra de BD assinada por ti. Podes desvendar algo sobre esse assunto?
AJG: Nunca deixei de fazer narração figurativa: tanto o Desenhar no Escuro como o Vigia são narrativas figurativas. Tenho uma visão alargada daquilo que cabe na Banda Desenhada e isso, às vezes, é difícil de explicar a um público muito fiel a certos cânones. O cinema nasceu mais tarde do que a banda desenhada, mas reparemos como ele se emancipou e hoje inclui uma variedade de géneros que cabem todos debaixo desse termo “cinema”: da fantasia heroica ao documentário, ao experimental, à instalação. No meio mais estrito da Banda Desenhada, quando o autor não usa vinhetas ou páginas subdivididas – e outros cânones do género – há muita gente que o põe fora. É pena, fica muito claustrofóbico para mim.
De qualquer forma, está na calha ainda este ano uma reedição, ou melhor, uma nova edição com material inédito de 3 obras antigas – falarei sobre isso em breve. E há um projeto de livro com o Ondjaki que já tenho estudado, mas que precisa de longas horas de desenho para ser concretizado – vai ser difícil arranjá-las antes de 2024.

livros antónio jorge gonçalves

NPS: Fala-nos dos projetos em que estás a trabalhar atualmente.
AJG: O meu trabalho central para este ano é uma série em 8 episódios que estou a fazer para um canal de televisão. É um projeto sonhado há um par de anos que encontrou agora a possibilidade de ser feito. Falarei mais sobre isto quando for altura. Continuo em digressão com vários dos meus espetáculos. Estou a trabalhar na criação de um livro – texto e imagem – para o público juvenil, numa nova coleção da Assembleia da República. Estou também a trabalhar num livro ilustrado para uma editora catalã, e ainda em desenhos para um livro do músico Vítor Rua.

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