Raquel Sem Interesse: “Desta vez, o tom humorista não tinha lugar na minha expressão”

Raquel Sem Interesse: “Desta vez, o tom humorista não tinha lugar na minha expressão”

raquel sem interesse - e agora?

Entrevista a Raquel Sem Interesse, a propósito do lançamento de E Agora?

Nuno Pereira de Sousa: A Quica, o teu alter ego, já abordava a questão da precariedade de emprego, o que se torna ainda mais evidente no livro autobiográfico E Agora?. A elaboração deste novo livro foi um processo de catarse?
Raquel Sem Interesse: Sim, agora que ouço “catarse”, sinto que faz todo o sentido! Até porque a ideia deste novo livro surgiu, precisamente, após o ano em que tentei fazer “carreira” da ilustração, onde apostei todo o meu tempo com o anterior projeto do Vida de Adulta e outro projeto que desenvolvi paralelamente, com ilustrações para um manual escolar. E, após finalizar ambos os projetos, infelizmente não encontrei mais oportunidades neste campo de trabalho, pelo menos o suficiente para me dar rendimento fixo. Sobre isto, também acredito que o período de pandemia que estávamos a viver, em pleno no ano de 2020, tenha vindo a aumentar essa dificuldade… Por isso, o facto de ter de voltar ao emprego que tinha anteriormente e do qual não gostava, impulsionou esta necessidade de «desabafar», de expor a minha realidade e que é de tantos outros, mas agora de uma maneira diferente, mais séria, até porque senti que o tom leve e humorista de outrora, não tinha desta vez lugar na minha expressão.

Nuno Pereira de Sousa: No entanto, há uma mensagem de esperança com o teu livro. Era essa a mensagem principal que querias passar aos teus leitores?
Raquel Sem Interesse: Sim, a mensagem de esperança é mesmo de passar, até porque, apesar de tudo e apesar do desânimo e das dificuldades, nunca ponderei “acomodar-me”. E se me sinto mal, infeliz, faço os possíveis para mudar. Nem que isso signifique o “saltitar” de trabalho em trabalho, que entendo não ser uma opção válida para muitas pessoas, porém, e na minha perspetiva, o bem estar pessoal e a saúde mental têm mais importância.

Nuno Pereira de Sousa: Ainda existe bastante trabalho a fazer no que toca à equidade de género no mundo laboral. Olhando para os percursos dos colegas que se formaram na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto contigo, notas distinção entre os géneros?
Raquel Sem Interesse: Sim, de facto ainda há muito trabalho a fazer nesse sentido. Em relação à minha experiência académica, é curioso, porque sempre foi muito claro que o número de estudantes do género feminino era bastante superior ao número de estudantes do género masculino, pelo menos na Universidade do Porto. Por isso, a ideia de ainda haver distinção entre géneros no mundo laboral, é algo que não me faz muito sentido… E, pelo menos na área artística, não posso dizer que tenha sentido nunca qualquer distinção do género. Agora, nas outras áreas de trabalho por onde já passei, infelizmente, sim.

Nuno Pereira de Sousa: Aparentemente, ter um livro de banda desenhada editado em Portugal por um grande grupo editorial não origina nenhuma oportunidade do ponto de vista laboral. Foi isso que sentiste com o livro Uma Vida de Adulta
Raquel Sem Interesse: Uma das minhas melhores amigas e também artista, Uma Joana, uma vez disse-me: “Fazer um livro é um ato de amor”. E é isso mesmo. Ninguém “vive” dos seus livros, pelo menos em Portugal… Não sei bem em relação aos outros países, mas a não ser que a tua obra seja um bestseller ou tenha sido adaptada a um filme de Hollywood, acho muito difícil. E sim, tenho amigos da área que têm trabalho publicado, mas de facto obtêm o seu rendimento fixo através de outro(s) trabalho(s), alguns ainda na área – seja com outros projetos de ilustração pontuais ou mesmo através da área do ensino – e outros noutros áreas – tal como o meu caso.

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Nuno Pereira de Sousa Neste livro, revelas que foi graças a ires a um evento a Lisboa, depois de teres ido previamente ao mesmo evento no distrito do Porto, que uma editora visitou o teu stand e se interessou pelo teu trabalho, o que originou a edição do teu primeiro livro. Apesar de vivermos num mundo global, à distância de um clique, as oportunidades para ilustradores freelancers estão quase exclusivamente na capital?
Raquel Sem Interesse: Acredito existirem mais oportunidades na capital, sim. O mesmo evento que estive no Porto e posteriormente se deslocou para Lisboa é a Comic Con Portugal e apenas tive oportunidade de participar em 2 edições, mesmo antes desta mudança de cidade. E um evento deste calibre, para mim, sempre foi essencial para nos darmos a conhecer e conhecer outros artistas e profissionais da área. Até porque, o quão longe chegas no mundo digital e à distância de um clique, é algo que funciona para alguns e não funciona de todo para outros – na minha humilde perspetiva, nunca consegui perceber qual o “segredo” para tal façanha. E uma vez que se realizava no Porto, acabava por trazer muitas figuras que, de outra forma, estão centradas na capital. Por isso, quando o evento se descolou para Lisboa, foi uma grande “perda” para os residentes de cá. E de facto, ainda tentei ir a uma edição – a primeira em Lisboa -, que, na altura, me arrependi pois não compensou todo o trabalho, despesa e deslocação… Mas que, por outro lado, proporcionou-me o contacto que precisei para lançar o meu primeiro livro. Por isso, nisso, fui feliz. Mas agora podemos pensar em todos aqueles que não tiveram a mesma oportunidade e ficaram em terra.

Nuno Pereira de Sousa: Neste livro, revelas imensos dados sobre ti e a tua família – e, alguns locais, que não são descritos no texto, serão reconhecíveis nas ilustrações pelos leitores familiarizados com os mesmos. Como realizaste o balanço entre o que revelar e o que omitir?
Raquel Sem Interesse: Isso foi algo que quis deixar “fechado” desde o início, mesmo antes de desenhar os primeiros esboços. Quando a ideia surgiu, falei diretamente com as pessoas que mais foco têm no livro, até porque apesar de tudo se basear nas minhas memórias, essas mesmas pessoas têm, inevitavelmente, um lugar muito importante e marcado nas mesmas. Por isso, após este contacto direto, e após ter a certeza do quão confortáveis estariam nesta representação, desenvolvi o projeto tendo essa rede de segurança pessoal. E todas as outras referências que não são tão “reconhecíveis” nas ilustrações, são intencionais, até porque nunca quis em nenhum momento “expor” nada de quem não me sinto confortável ou próximo – de momento -, por isso decidi preservar esses detalhes e centrar-me na questão da ilustração de uma memória, que vale mais pela sua questão pessoal.

Nuno Pereira de Sousa: Que materiais utilizaste para elaborar esta banda desenhada?
Raquel Sem Interesse: Papel, lápis, canetas e marcadores. Ah, e mesa de luz! Tudo processo manual, do início ao fim.

Nuno Pereira de Sousa: “E agora”, Raquel? Em que projetos, te encontras a trabalhar atualmente?
Raquel Sem Interesse: Agora, estou apenas a cumprir o meu horário laboral diurno e o tempo livre é dedicado a mim, amigos e família. Algo que já não fazia há muito tempo, pois quase todos os momentos “livres” que tinha do dia – noites da semana e fins de semana – eram dedicados ao desenvolvimento deste livro. Por isso, agora estou numa fase em que preciso de algum “descanso” dessa rotina. E assim que a vontade de desenhar e desabafar de alguma coisa surja, voltarei ao meus rabiscos!

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