Daniel Lima: “A parábola é um desafio interessante para quem desenha”

Daniel Lima: “A parábola é um desafio interessante para quem desenha”

daniel lima - anguesângue

Entrevista a Daniel Lima, a propósito do lançamento de Anguesângue.

Nuno Pereira de Sousa: O que te motivou e como foi o processo criativo de adaptar os contos de Franz Kafka “Unhapiness” e “On Parables” à banda desenhada?
Daniel Lima: Motivou-me a ideia de anonimato. Em “Unhapiness” e “On Parables” os protagonistas não têm nome e não sabemos os antecedentes nem as consequências daquilo que é contado. Na adaptação, comecei por compor toda a narrativa a partir dos diálogos e unir numa só história os dois contos que originalmente são independentes. Depois fiz acrescentos, um ensaio da banda Faint Spirit e o nome Eugénio ao hóspede solitário de “Unhapiness”, que se veste de fato como um qualquer escrivão saído de uma história de manga de autores como Seiichi Hayashi ou Yoshikazu Ebisu. No entretanto, dei-me conta de que ia contar a história em três capítulos e escrevi para um deles um monólogo em que o personagem responde a um inquiridor fora de cena, sem alguma vez termos a certeza de que exista. Na verdade, todo o processo de adaptação assemelha-se ao pôr em cena de um texto como no Teatro.

Nuno Pereira de Sousa: Quais foram as maiores dificuldades que tiveste de ultrapassar?
Daniel Lima: Foram essencialmente técnicas, sobretudo na balonagem. A dimensão dos balões tinha que ser mantida entre as duas edições, a letã em inglês e a portuguesa, ainda que o número de carateres fosse diferente. Não disse ainda, mas o livro surgiu na sequência de um convite do editor da kuš! David Schilter para criar uma BD para a coleção kuš! mono. O David e o Marcos Farrajota da editora Chili Com Carne pensaram numa coedição, que acabou por não acontecer. 

Nuno Pereira de Sousa: Em “On Parables”, parece haver uma falta de comunicação entre a vida do quotidiano e um eventual sentido da vida. Que pensas sobre isso?
Daniel Lima: Nesse conto, há um hábil jogo entre a lógica e o senso comum. Por exemplo, quando dizemos “Esta frase não tem fim.” não há nenhum erro de sintaxe mas há um paradoxo no significado, pois sabemos que a frase termina. Com este álibi, Kafka incita-nos a usarmos a imaginação para arriscarmos uma interpretação se quisermos entrar no jogo. E mais uma vez, isso não nos traz nenhuma consolação para os nossos problemas do quotidiano… Ou talvez traga se tivermos algum sentido de humor.

Nuno Pereira de Sousa: Acreditas que a parábola é um recurso tão forte na narrativa gráfica como na escrita?
Daniel Lima: A parábola tem a força de traduzir uma ideia abstrata numa ideia concreta através de um ensinamento. É um desafio interessante tanto para quem desenha como para quem escreve.

Nuno Pereira de Sousa: Em “Unhappiness”, uma das interpretações possíveis é que o protagonista se bifurca entre si e um fantasma de quando era mais novo, curiosamente dando-lhe outro género, e que importa proteger. Encaras que a vida adulta e que a lucidez que a mesma carrega trazem com ela a infelicidade?
Daniel Lima: Sobre “Unhappiness”, podemos pensar na frase “Your clown is your problem”, no sentido em que na vida adulta temos cada vez mais de lidar com a nossa última máscara, com o nosso “Personal Clown”. Essa talvez seja a nossa maior adversidade, se tivermos lucidez.

Nuno Pereira de Sousa: Que significado se esconde por trás do título Anguesângue
Daniel Lima: Anguesângue formou-se a partir de um conjunto de sons. Quis um título que não nomeasse nem descrevesse nada em concreto.

Nuno Pereira de Sousa: Que materiais utilizaste para elaborar esta banda desenhada?
Daniel Lima: Lápis, papel, mesa de luz e photoshop, como vem sendo habitual.

Nuno Pereira de Sousa: Tens bastantes trabalhos publicados em obras coletivas/antologias em Portugal e na Letónia, bem como algumas bandas desenhadas a solo. O feedback da crítica especializada e do público letão aos teus vários trabalhos tem sido diferente do do português?
Daniel Lima: Até ao momento, não tenho notícia desse feedback.

Nuno Pereira de Sousa: No press release de Anguesângue, é revelado que és o autor de um livro de banda desenhada a solo sob pseudónimo. O que te levou a optar por assinares uma obra sob pseudónimo? E esta revelação é o início de uma vontade da obra passar a estar associada ao autor Daniel Lima?
Daniel Lima: Assinei sob pseudónimo, mas teria sido mais lógico ter trabalhado um heterónimo se tivesse tido mais tempo. O heterónimo implica a criação de uma personalidade que, em geral, justifica uma abordagem diferente do trabalho assinado em nome próprio. Era essa a minha intenção, criar uma personalidade ficcional.

Nuno Pereira de Sousa: Tens sido um dos coordenadores editoriais da antologia anual Pentângulo. Fala-nos um pouco desse projeto e se tem correspondido aos objetivos.
Daniel Lima: A revista Pentângulo resulta de uma parceria, criada pelo Jorge Nesbitt e Marcos Farrajota, entre o Ar.Co e a Chili Com Carne. O objetivo é publicar numa base regular o trabalho de alunos e ex-alunos para dar a conhecer novos autores. Desde o início também se juntaram à publicação (ex-)professores, proporcionando a convivência de primeiros trabalhos com trabalhos de autores já reconhecidos. Nos 4 números já publicados, há uma grande variedade de abordagens à BD a par de alguns textos críticos, ilustrações e balanços sobre a produção de zines e edições independentes. Queremos continuar!

Nuno Pereira de Sousa: És corresponsável pelo departamento de Ilustração/BD do Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, onde lecionas. Fala-nos um pouco destas atividades.
Daniel Lima: Dei as minhas primeiras aulas no Ar.Co em 2003 a convite do Jorge Nesbitt e Nuno Saraiva. Sem o apoio de ambos e o das pessoas que trabalham na escola, não teria sido possível aceitar o desafio. Na altura, a minha perceção sobre a escola era a de que ali se proporcionava uma proximidade singular entre professores e alunos na partilha de experiências. E é exatamente essa a minha experiência nestes 20 anos. No Ar.Co, em geral, as turmas são muito heterogéneas. Os alunos têm idades, formação, profissões, experiências e expectativas muito diferentes.  A meu ver, é um óptimo contexto para o ensino artístico. Com o Jorge à frente do departamento, o curso chegou à ideia e estrutura que ainda hoje tem – oferecer aos alunos, através de uma experimentação essencialmente prática, 3 níveis distintos para desenvolverem técnica e conceptualmente as suas capacidades nas várias disciplinas de Ilustração e Banda Desenhada. Neste momento, há uma aposta na edição de múltiplos, assente em técnicas de reprodução, como a gravura e a serigrafia, e juntámos o atelier de gravura, orientado pela Madalena Parreira, ao departamento, do qual somos atualmente os corresponsáveis. Ao longo dos anos, o departamento vem também desenvolvendo colaborações e parcerias com entidades exteriores, como a Bedeteca, Cinemateca, bibliotecas, museus, escolas, editoras, feiras de edição, etc. Parabéns ao Ar.Co, que este ano comemora com uma série de iniciativas o seu quinquagésimo aniversário!

Nuno Pereira de Sousa: Foste um dos jurados de uma das últimas edições dos Prémios Amadora BD, os quais geram frequentemente alguma polémica no meio. Pessoalmente, que julgas que poderia ser feito para estes Prémios melhor celebrarem esta arte? 
Daniel Lima: Fui jurado no ano de 2021. Para um Festival Internacional de Banda Desenhada, creio que é desejável afinar sempre o radar com uma muito boa equipa na organização e uma equipa corajosa na programação que assegurem o facto de a banda desenhada não ser uma só coisa mas sim várias e distintas entre si. E melhorar, em tudo o que seja possível, a relação com todos os autores… E assim sucessivamente.

Nuno Pereira de Sousa: Em que projetos te encontras a trabalhar atualmente?
Daniel Lima: Estou a reunir material para uma história curta de 4 páginas e tenho o guião de uma história sem palavras que gostava de avançar para editar em breve. Vamos ver o que acontece …

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