Entrevista a Roberto Macedo Alves, a propósito do lançamento de O Teatro. Lugar de (entre)mundos.
Nuno Pereira de Sousa: A Livraria Sétima Dimensão, fundada por ti, vai comemorar 20 anos em 2024. Que momentos desejas destacar, no que toca à Sétima Dimensão, nestas quase duas décadas?
Roberto Macedo Alves: Agradeço a oportunidade de poder partilhar contigo alguns dos momentos mais especiais da Livraria Sétima Dimensão ao longo dos seus 19 anos de existência. É impressionante pensar que já se passaram quase 20 anos desde que abrimos as portas pela primeira vez, num espaço muito discreto no segundo andar de um edifício no centro do Funchal. Nessa altura, na Região Autónoma da Madeira, a Banda Desenhada não tinha grande expressão. Embora existissem – e ainda existem! – alguns notáveis colecionadores que muito estimam e valorizam a BD, na Madeira não existia grande tradição de criação de Banda Desenhada, nem se tratava de um meio com muita expressão ou sequer presença nas livrarias. Foi precisamente por essas razões que no ano 2004 decidi inaugurar a Livraria Sétima Dimensão, trazendo para a cidade do Funchal um espaço que me parecia fundamental para poder dar visibilidade e acolher a comunidade de apreciadores de Banda Desenhada da Madeira que sabia que existia, mas que se encontrava discretamente silenciosa e dispersa. Um dos momentos mais especiais foi certamente a abertura da primeira localização física, a pequena festa de inauguração para dar a conhecer a nova loja ao público apreciador de Banda Desenhada. A euforia de abrir as portas ao público pela primeira vez e ter a oportunidade de compartilhar a paixão pelos livros com a comunidade local é uma sensação sem comparação!
Roberto Macedo Alves: Nesses anos iniciais, entramos em contacto com José Carlos Fernandes, um dos autores nacionais que mais admiro e que foi o nosso convidado na altura da primeira participação da Sétima Dimensão na Feira do Livro do Funchal, no ano 2005. Nessa altura, o José Carlos Fernandes ofereceu-nos uma ilustração, com a respetiva autorização para poder utilizá-la como imagem da livraria na montra e sinalética exterior da loja. Foi um momento de grande orgulho saber que contávamos com a amizade e apoio daquele que consideramos ser um dos maiores criadores portugueses de Banda Desenhada. Desde o início, tentei que a Sétima Dimensão fosse um espaço acolhedor e convidativo e rapidamente se tornou um local de encontro e conversa, não só para apreciadores de Banda Desenhada, mas também para outras comunidades como os “cosplayers” ou os jogadores de “Magic The Gathering”, de “Yu-Gi-Oh” ou de “Heroclix”. Ao longo dos anos, tivemos a sorte de poder acolher diversos eventos, incluindo lançamentos de fanzines como “Nevermind the dog, beware of the owner”, de Sílvio Cró e Ricardo Ferreira, galerista da Mouraria – Galeria de Arte, situada no Funchal. Nos anos seguintes, foi possível organizar encontros e sessões de autógrafos com relevantes autores nacionais, como José Carlos Fernandes, Roberto Gomes, Filipe Andrade, Hugo Teixeira e Ricardo Cabral e também criadores internacionais como David Lloyd e Colleen Doran. Esses eventos foram momentos muito especiais para a comunidade de apreciadores de Banda Desenhada na Região Autónoma da Madeira.
Roberto Macedo Alves: Penso que também será importante destacar algumas das iniciativas que tivemos o privilégio de organizar com estes autores convidados. Por exemplo, no ano 2008, organizamos um conjunto de workshops de BD dinamizados pela Colleen Doran, com o apoio da Câmara Municipal do Funchal e da Direção Regional de Juventude. No ano 2011, organizamos uma exposição de pranchas originais de “V for Vendetta”, em parceria com o Centro das Artes – Casa das Mudas, na Calheta, que contou com a presença de David Lloyd na inauguração, em sessões de autógrafos, e muitas horas de conversa sobre Banda Desenhada. Nessa altura, tivemos a oportunidade de falar sobre as ideias que David Lloyd tinha em mente relacionadas com a edição digital de BD, que depois iriam resultar no projeto “Aces Weekly” (https://www.acesweekly.co.uk), do qual sou, com orgulho, um dos primeiros subscritores. A possibilidade de ter partilhado as belezas da minha terra com alguns dos autores que mais admiro é certamente das experiências mais marcantes e enriquecedoras destas duas décadas de Sétima Dimensão.
Roberto Macedo Alves: Finalmente, gostaria de destacar também a etapa mais recente, que tem possibilitado a publicação de novas obras de Banda Desenhada desenvolvidas por criadores da Madeira e editadas pela Sétima Dimensão ou desenvolvidas para outras entidades culturais, o que possibilitou dar mais visibilidade ao trabalho que está a ser desenvolvido pelos nossos artistas locais. Desde a inauguração do primeiro local da Sétima Dimensão, mudamos várias vezes de espaço físico, celebrando sempre as novas versões da loja. Neste momento de transição estamos a funcionar apenas com loja virtual, enquanto organizamos as coisas para ter um novo espaço que possa estar mais enquadrado com as dinâmicas que temos desenvolvido nos últimos anos.
Nuno Pereira de Sousa: E o que correu menos bem ao longo destes anos?
Roberto Macedo Alves: Apesar das alegrias e conquistas destes 19 anos, também enfrentamos alguns desafios e dificuldades ao longo do caminho, porque, acima de tudo, a Sétima Dimensão é um lugar onde temos liberdade para experimentar diferentes ideias, estratégias e abordagens. Naturalmente, quando experimentamos coisas e ideias diferentes, nem todas acabam por ter sucesso. A Madeira é uma região com pouco mais de 250 mil habitantes, pelo que o mercado é muito, muito reduzido. Embora possamos contar cada vez mais com o carinho e acolhimento dos apreciadores de BD madeirenses, tem sido sempre difícil assegurar a existência de um projeto como este. Tem alturas que temos mais energia e entusiasmo, outros momentos onde parece que não há força para continuar – mas aos poucos, vamos avançando, mesmo que lentamente. Afinal, tal como no continente, muito deste trabalho é feito por “carolice” e por vontade de fazer crescer o entusiasmo pela Banda Desenhada. Não me consigo lembrar de muitos aspetos que tenham corrido menos bem. Mas eu costumo dizer que sofro de “amnésia seletiva” e tenho tendência a esquecer a maior parte das coisas menos positivas que me acontecem. Lembro-me das lições que tirei dessas experiências, mas as primeiras coisas que desaparecem da minha memória são as que correm menos bem, pelo que esta pergunta é muito difícil de responder. Uma coisa é certa – na maior parte dos casos, as dificuldades que surgiram acabaram por possibilitar alterações que no fim tiveram consequências positivas. É como diz Ralph Waldo Emerson, o mais importante não é o destino, mas sim a jornada, e acabamos sempre por crescer quando enfrentamos as dificuldades. Ao longo do percurso, é inevitável que tenham surgido erros causados por ingenuidade, pela inexperiência ou por situações inesperadas que acabam por nos dar algumas pancadas com que não contávamos, mas são essas vivências que tornam especial o percurso.
Nuno Pereira de Sousa: Pensando nas grandes correntes de banda desenhada, que material é preferido pelos clientes da Sétima Dimensão? Acreditas existir diferenças em relação a outras livrarias especializadas em BD no continente?
Roberto Macedo Alves: Em termos de grandes correntes de Banda Desenhada, “novelas gráficas”, edições de manga ou super-heróis Marvel ou DC. Não vejo grandes diferenças entre os títulos que são mais populares cá ou no continente – os nossos livros mais vendidos correspondem mais ou menos às categorias que vemos que são mais populares nas outras livrarias e lojas especializadas. Deve ser referido que tenho um grande carinho e admiração pelas históricas livrarias especializadas em BD que existem no continente, que eu frequentava quando era estudante e que são sempre exemplo e inspiração para nós. Penso que a principal diferença em relação a outras livrarias especializadas em BD no continente é a valorização que é dada às criações de BD regionais, pois são os nossos títulos mais populares. Desde 2008, temos tentado fazer algumas publicações para dar a conhecer o trabalho dos nossos criadores regionais. Para além dos primeiros fanzines, a primeira edição publicada foi o livro 24 Hour Comics Day: Made in Madeira, um livro em formato A5, com 100 páginas, que reuniu alguns dos trabalhos criados durante os primeiros anos da iniciativa internacional “24 Hour Comics Day”, que se realiza anualmente no primeiro fim de semana de outubro. Deverá ser referido que o Funchal foi a primeira cidade portuguesa a participar nesta iniciativa, no ano 2005, e que foram publicados excertos de alguns dos trabalhos dos criadores madeirenses João Barradas e Sílvio Cró na antologia 24 Hour Comics Day Highlights, publicada pela organização [norte-americana] em 2006. Este evento ainda é realizado anualmente na Madeira, com o apoio da Direção Regional de Juventude e a Secretaria de Educação. O evento que realizamos no ano 2022, o primeiro depois da interrupção causada pela pandemia, contou com 20 participantes que estiveram reunidos durante 24 horas para tentar criar uma BD completa de 24 páginas. Considerando as características do evento em termos de restrições de tempo volume de produção, é natural que muitos dos trabalhos não sejam obras acabadas de excelente qualidade, mas são certamente trabalhos repletos de imaginação que muitas vezes conseguem surpreender o leitor. Todos os anos em que o evento foi realizado, organizamos uma exposição das pranchas originais que foram criadas nessa edição, para que a comunidade local possa ver o trabalho desenvolvido pelos participantes.
Nuno Pereira de Sousa: Em que consiste o Coletivo Artístico da Sétima Dimensão?
Roberto Macedo Alves: O Coletivo Artístico da Sétima Dimensão é – ainda – um agrupamento informal composto por um grupo de criadores madeirenses cujo trabalho tem elevada qualidade técnica e artística e que podem aproveitar os recursos da Sétima Dimensão para publicar novas obras e promover os seus trabalhos. Ainda é um projeto recente, mas através desta iniciativa, pretendemos criar um grupo onde a Banda Desenhada possa ser apreciada, criada, compartilhada e discutida, estabelecendo uma conexão entre os nossos artistas e a comunidade. É este grupo que participa nos vários projetos que a Sétima Dimensão desenvolve, tanto em edição própria como em trabalhos elaborados para outros editores. Convivemos regularmente através de diversos encontros informais e tentamos promover a nível regional os projetos independentes realizados pelos artistas do coletivo. Está nos nossos planos poder arranjar um espaço ou parceria que possibilite a realização de exposições e outros eventos, onde os artistas do Coletivo Artístico possam ter a oportunidade de apresentar os seus trabalhos originais e ter um contacto com o público num ambiente diferente e mais específico. O objetivo é incentivar o diálogo entre os nossos criadores os apreciadores de Banda Desenhada, enriquecendo a experiência cultural dos artistas e das pessoas que visitam a Sétima Dimensão. Para além das exposições, pretendemos promover eventos, workshops e palestras sobre Banda Desenhada, semelhantes às que já foram realizadas em vários locais da ilha, como a oficina de BD dinamizada por Válter de Sousa na Feira do Livro de Santa Cruz este ano, ou o conjunto de iniciativas que os artistas do coletivo realizaram durante o mês da Banda Desenhada na Biblioteca Municipal do Funchal. Acreditamos que a Banda Desenhada tem um papel fundamental, não só como meio de entretenimento, mas também como ferramenta educativa e veículo de incentivo à leitura, e através destas atividades tentamos inspirar, educar e envolver novos públicos.
Roberto Macedo Alves: Este grupo, que surgiu quase por brincadeira na altura da pandemia, é uma forma de apoiar e fortalecer os jovens criadores de BD da Madeira, dando visibilidade aos talentos da nossa comunidade e criando um espaço onde os seus trabalhos possam ser devidamente respeitados e apreciados. Acreditamos que este tipo de iniciativas enriquece a atividade realizada pela Sétima Dimensão e contribui para a promoção da cultura na Região Autónoma da Madeira.
Nuno Pereira de Sousa: O ano passado, tu e outros autores de BD residentes na Madeira elaboraram a banda desenhada Os Olhos que Escutam o Mundo, uma biografia de António Aragão editada pela Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região Autónoma da Madeira. Como tem sido o feedback?
Roberto Macedo Alves: O livro Os Olhos que Escutam o Mundo, elaborado para a Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região Autónoma da Madeira no âmbito das comemorações do centenário de António Aragão é uma obra que muito nos orgulha, não só pela possibilidade de prestar homenagem a uma grande figura da cultura madeirense, mas pela possibilidade de utilizar a linguagem da Banda Desenhada para construir uma biografia em BD diferente da estrutura habitual das obras biográficas institucionais. O feedback em relação a essa banda desenhada tem sido extremamente positivo. Muitos leitores de todas as idades, assim como muitos professores e a comunidade escolar em geral, tem elogiado a qualidade artística e narrativa da obra, destacando a sensibilidade e a originalidade com que retratamos a vida desta figura histórica. Recebemos também elogios de pessoas que conviveram com António Aragão, como o notável António Dantas ou o talentoso artista Rigo 23, um dos elementos da primeira geração da “San Francisco Mission School art movement”, que nasceu na Madeira e conviveu com António Aragão antes da sua partida para os Estados Unidos. Em termos de criação da obra, foi muito interessante ver como estes jovens artistas estudaram e trabalharam todo o material sobre António Aragão, porque nem todos estavam familiarizados com esta figura histórica. Por esta razão, disponibilizei imenso material de estudo e referências devidamente validadas e organizadas e todos juntos visitamos todas as exposições comemorativas das diversas facetas da sua obra, assim como os seus trabalhos de arte pública na Madeira e Porto Santo. Foi interessante ver como todos os autores deste livro, mantendo o seu estilo característico, conseguiram representar no papel o carisma do protagonista histórico que estudaram durante tanto tempo. Este acolhimento positivo reforça a importância deste tipo de narrativas biográficas ou históricas, representadas através da banda desenhada e a sua capacidade de estimular o interesse por este tipo de temas culturais. O lançamento dessa banda desenhada assinalou um momento significativo para todos os artistas que participaram, pois tivemos a oportunidade de homenagear um dos grandes nomes da cultura madeirense e obtivemos o reconhecimento e voto de confiança por parte de uma entidade tão relevante como a Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Madeira. Fico extremamente agradecido por todo o reconhecimento que temos recebido, incluindo o Prémio de Melhor Obra Nacional com distribuição alternativa dos Prémios Bandas Desenhadas e pelo impacto que a obra tem tido na comunidade local.
Nuno Pereira de Sousa: Algumas das técnicas utilizadas nessa banda desenhada foram novamente utilizadas em O Teatro: Lugar de (entre)mundos. Sentiste que a divisão de trabalho entre a equipa criativa já estava mais oleada nesta segunda incursão?
Roberto Macedo Alves: O livro O Teatro. Lugar de (entre) mundos” foi criado com o propósito institucional e educativo de contar a história do Teatro Municipal Baltazar Dias no Funchal, por ocasião das celebrações do seu 135.º aniversário. Trata-se também de uma obra colaborativa que integra vários artistas do nosso coletivo e tenta fugir aos recursos narrativos habituais das obras históricas e “expositivas” que pretendem contar diversos acontecimentos relevantes da existência do Teatro Municipal ao longo dos seus 135 anos de existência. Para a criação desta obra, para além da consulta de informação histórica publicada em livros e na imprensa regional, efetuamos também entrevistas aos diversos funcionários do Teatro, para recolher informação passada por tradição e que nunca foi incluída nos trabalhos publicados. É por esta razão que neste livro, os protagonistas são dois fantasmas, que são referidos a título de brincadeira pela equipa que trabalha no Teatro e até já protagonizaram algumas “visitas encenadas”. São eles os que conduzem a narrativa para dar a conhecer a história do Teatro Municipal, enfrentando um adversário contemporâneo que ameaça destruir a essência e as memórias deste histórico edifício. A experiência no desenvolvimento do livro sobre António Aragão possibilitou uma melhor comunicação com a equipa e entre os seus elementos, que já conseguiam visualizar claramente o tipo de trabalho conjunto que se pretendia para este livro. Esta junção de estilos diferentes nem sempre é fácil de concretizar, mas no nosso caso, os autores já conheciam os estilos de desenho dos seus companheiros e conseguiam ter uma ideia visual do conjunto final depois de ter montado completamente todas as “peças”. Assim, cada artista era responsável por um elemento específico – o Francisco Branco criou os fantasmas e o Teatro imaginário, o Antony Brazão representou os flashbacks históricos, o Válter de Sousa tratou da biografia de Baltazar Dias, o dramaturgo cego da madeira que deu nome ao nosso teatro Municipal, e eu prestei homenagem à equipa que trabalha atualmente no teatro, representando os funcionários como personagens desta BD. Acreditamos que esta exploração e combinação de diferentes estilos artísticos, narrativas e abordagens temáticas, tornam “O Teatro: Lugar de (entre)mundos uma obra única e cativante.
Roberto Macedo Alves: No entanto, é importante referir que cada projeto tem os seus próprios desafios e aprendizagens. Embora tenhamos melhorado o ritmo e a distribuição de trabalho e colaboração, iremos sempre tentar aprimorar as nossas habilidades e processos criativos. Espero que as futuras obras coletivas que possam surgir sejam sempre oportunidade de crescimento e evolução, tanto a nível individual como em equipa.
Nuno Pereira de Sousa: Apesar do projeto para a revista Outermost Comics Edition ambicionar publicar bandas desenhadas de todas as Regiões Ultraperiféricas da Europa, nos seus primeiros 3 números apenas tem publicado BD de autores residentes na Madeira. Que diligências estás a tomar para concretizar esse próximo passo?
Roberto Macedo Alves: O projeto da Outermost Comics Edition é mais uma iniciativa experimental nesta aventura que é a Sétima Dimensão. O meu desejo de editar uma revista periódica de BD não é uma ideia recente. Como leitor que cresceu com as revistas de comics americanos, não consigo resistir ao encanto que oferece a página impressa. Essa combinação dos aspetos visuais das pranchas de BD com o elemento táctil, o cheiro e o som continuam a permitir que a leitura de uma revista de BD em papel me faça escapar quase de imediato da nossa quotidianidade digital. Efetivamente, a ambição da revista Outermost Comics Edition é a de publicar bandas desenhadas de todas as Regiões Ultraperiféricas da Europa. Até agora, temos publicado apenas obras de autores residentes na Madeira, porque subestimamos o tempo e as tarefas necessárias para concretizar adequadamente uma iniciativa desta envergadura e porque não esperava ter tantas propostas de artistas da Madeira logo no início. No entanto, já estabelecemos vários contactos com amigos das Canárias e dos Açores para participar neste projeto, que pretende abraçar cada vez mais participantes e mais regiões, porque continuamos a defender a importância de oferecer uma plataforma de expressão para artistas da ultraperiferia da Europa.
Roberto Macedo Alves: Um elemento que será fundamental para a divulgação da revista nas regiões ultraperiféricas será a concretização e distribuição da edição online, em formato e-book, em inglês, espanhol e português, pois o desenvolvimento destas versões sofreu atrasos em relação aos nossos planos iniciais e, provavelmente, só teremos estas edições disponíveis mais para o final de 2023. Reconhecemos que a concretização deste próximo passo exige mais tempo e dedicação do que tínhamos considerado inicialmente, pois envolve estabelecer conexões sólidas com artistas, superar desafios logísticos e garantir a qualidade das obras selecionadas. No entanto, estamos determinados em promover uma plataforma inclusiva que permita dar voz a artistas de todas as Regiões Ultraperiféricas. Acreditamos que a Outermost Comics Edition tem o potencial de se tornar um espaço verdadeiramente representativo e diversificado, abrangendo a diversidade de vozes e perspetivas dos artistas das Regiões Ultraperiféricas da Europa. Temos uma grande quantidade de pessoas à nossa volta que estão a fazer coisas fantásticas e queremos que esta seja uma plataforma que possa ajudar a expressá-las.
Nuno Pereira de Sousa: As revistas de banda desenhada são algo praticamente extinto em Portugal. Quando existem, não são vendidas em pontos de venda de periódicos, são aperiódicas e/ou não se assemelham fisicamente a revistas. A revista Outermost Comics Edition não tem conseguido manter a anunciada periodicidade trimestral e também não está disponível nas bancas. Mas, enquanto revista, como tem sido a sua aceitação pelos leitores?
Roberto Macedo Alves: É verdade que o panorama as revistas de banda desenhada têm enfrentado desafios em Portugal, mas esta era uma experiência que eu tinha de fazer… Sempre quis editar uma revista, criar um veículo que através da sua edição em papel, permitisse partilhar os trabalhos dos nossos criadores com o público. A periodicidade trimestral foi um objetivo ambicioso. O ritmo de preparação e publicação vai sendo melhorado à medida que ganhamos mais experiência, mas subestimamos a dificuldade de criar uma publicação periódica trimestral. No entanto, continuo a acreditar que criar uma revista em papel é algo mágico, num mundo onde as coisas são cada vez mais virtualizadas e “na nuvem”, tornar real um objeto físico que chegará à mão dos leitores continua a ser algo muito especial. Embora tenhamos enfrentado desafios para manter a anunciada periodicidade trimestral e expandir a disponibilidade nas bancas da Madeira, temos procurado formas alternativas de tornar a revista acessível aos leitores. E, como já referi, estamos a finalizar as questões técnicas necessárias para disponibilizar a revista em formato digital, permitindo que mais leitores fora da Madeira possam adquirir e desfrutar do conteúdo mais comodamente.
Roberto Macedo Alves: A Outermost Comics Edition tem sido muito bem recebida pelos leitores da Madeira desde o seu lançamento, apesar da distribuição limitada em bancas. Recebemos regularmente feedback extremamente positivo sobre a qualidade das obras apresentadas, a variedade de estilos artísticos e narrativas, bem como sobre a própria produção física da revista. É interessante ver a quantidade de jovens leitores da Madeira que tem elogiado as diversas abordagens narrativas seguidas por alguns dos autores da revista. Valorizamos muito todo o apoio e o feedback dos leitores, pois são eles que nos impulsionam a continuar produzindo e aprimorando a revista, ajudando-nos a proporcionar uma experiência de leitura agradável e enriquecedora.
Nuno Pereira de Sousa: É necessário existir previamente um conjunto considerável de autores – como o Coletivo Artístico da Sétima Dimensão ou os alunos do Curso Livre de Banda Desenhada do Conservatório Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode -, para garantir que haja um aporte periódico de trabalhos para que seja possível editar, atualmente, uma revista?
Roberto Macedo Alves: Se não tivéssemos este conjunto considerável de autores, os artistas da Sétima Dimensão ou os alunos do Curso Livre de BD, não teria sido possível criar este projeto. Acima de tudo, a Outermost Comics Edition é um trabalho de paixão, uma publicação criada para estabelecer e reforçar laços entre os criadores da Madeira e da ultraperiferia, porque de certa forma, ainda existe alguma sensação de isolamento nestas regiões, apesar de todas as possibilidades de conetividade que nos oferecem as tecnologias digitais. Porque, vendo bem, quantas colaborações existem entre os criadores da Madeira e do Continente? Em parte, tem sido também uma falha da minha parte, pois não tenho olhado “para fora” da ilha. Alguns dos nossos autores têm desenvolvido projetos autónomos, como a nossa Paola Rivas, que criou e atualiza regularmente um webcomic bastante interessante chamado Okami Gang, que pode ser lido na plataforma tapas.io.. Trata-se de um webcomic que já tem mais de 31 mil visualizações e 1200 subscritores. Para além dos grupos de autores que mencionas nesta questão, é interessante ver como surgem novas propostas de artistas madeirenses à medida que é conhecido o trabalho publicado nos três primeiros números. Tal como tinha referido acima, assim que conseguirmos acertar as questões necessárias para uma efetiva distribuição digital, poderemos alargar esta dinâmica aos autores das restantes regiões ultraperiféricas. Ao garantir um aporte periódico de trabalhos, podemos oferecer aos leitores uma revista vibrante e atualizada regularmente. A participação ativa dos grupos como o Coletivo Artístico da Sétima Dimensão e os alunos do Curso Livre de Banda Desenhada do Conservatório Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode, assim como a abertura a outros artistas, desempenhou um papel crucial no arranque desta aventura que foi a Outermost Comics Edition.
Nuno Pereira de Sousa: Fala-nos um pouco sobre o Curso Livre de Banda Desenhada do Conservatório Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode -, lecionado por ti.
Roberto Macedo Alves: Os cursos livres em artes dinamizados no Conservatório implementam atividades no âmbito da música, do teatro, da dança, das artes visuais e da musicoterapia. Visam proporcionar a ocupação criativa dos tempos livres de crianças e jovens, através de atividades que irão promover o estímulo e o desenvolvimento das diferentes formas de comunicação e expressão artística. O Curso Livre de Banda Desenhada surgiu no ano letivo 2021-2022 com o propósito de ajudar as pessoas interessadas a desenvolver as suas competências na criação de obras de Banda Desenhada. Este curso é uma iniciativa que visa proporcionar aos estudantes uma formação exploratória no campo da banda desenhada, estimulando a criatividade e o desenvolvimento artístico. Nas aulas, são abordados os fundamentos técnicos e narrativos da banda desenhada, e são também trabalhadas a expressão pessoal e acima de tudo a experimentação artística. No Curso Livre de Banda Desenhada, os alunos têm a oportunidade de aprender técnicas de desenho, composição de página, criação de personagens, argumento e narrativa visual. Além disso, incentivamos a exploração de diferentes estilos e abordagens artísticas, permitindo que cada estudante desenvolva sua própria voz criativa. Como já se viu pelas obras mais recentes publicadas pela Sétima Dimensão, sou grande apreciador dos trabalhos colaborativos e dos seus resultados inesperados. Por esta razão, também neste curso promovemos um ambiente de aprendizagem colaborativa, onde os alunos são livres para trocar experiências, compartilhar ideias e inspirar-se mutuamente. Também incentivamos a participação em projetos “do mundo real”, para que os alunos possam vivenciar a dinâmica de trabalho em equipa e o processo necessário para poder ver publicados os seus próprios trabalhos. Em alguns casos, tentamos também trabalhar uma compreensão mais profunda da linguagem visual e da narrativa. Por esta razão, ao longo do curso, também exploramos conceitos de semiótica, estrutura narrativa e estudamos diversos exemplos de trabalhos de destaque de autores nacionais e internacionais, visando ampliar as referências dos alunos e estimular a sua capacidade de contar histórias visualmente. No conservatório existem outros cursos livres e profissionais dignos de nota, como o Curso Profissional de Técnico Multimédia ou o Curso Profissional de Técnico de Animação 2D /3D, onde se propõe a formação de profissionais numa área com muita procura devido ao grande desenvolvimento que tem tido a indústria do cinema e dos videojogos, tanto a nível nacional como internacional. Acredito profundamente na importância da educação pelas artes, especialmente na sua importância no desenvolvimento dos mais jovens. A Banda Desenhada é uma forma de arte versátil e cativante, que permite estimular a imaginação, a criatividade e a expressão pessoal. Neste Curso Livre de Banda Desenhada, tenho o privilégio de contribuir para o crescimento e desenvolvimento artístico dos nossos alunos, ajudando-os a descobrir seu potencial e a explorar o mundo fascinante da banda desenhada.
Nuno Pereira de Sousa: Para além de O Teatro: Lugar de (Entre)Mundos e dos 3 números da revista Outermost Comics Edition, recentemente a Sétima Dimensão editou também O Mundo de Elisa: Amizade, Inclusão e Cidadania, cuja totalidade das receitas reverte a favor de Elisa Ponte, a jovem autora deste livro que conta com a colaboração de muitos convidados, também eles autores de BD residentes na Madeira. Como surgiu este projeto?
Roberto Macedo Alves: A Elisa Ponte é uma jovem que tem uma condição genética de saúde chamada miopatia de Bethlem, cujo nome advém do médico holandês que descreveu a doença pela primeira vez, em 1976. É um tipo de miopatia congénita rara, havendo pouco mais de cem casos descritos na literatura. No ano letivo de 2021-2022, a professora Laíz Vieira, da Escola Gonçalves Zarco, teve a ideia de registar de forma despretensiosa alguns dos sonhos e trabalhos criativos da Elisa num pequeno folheto intitulado “As Artes da Elisa”. Esta pequena publicação foi acolhida pela comunidade escolar e esgotou rapidamente, ficando sempre o sonho de publicar um livro de maiores dimensões onde fosse possível partilhar um pouco mais da visão da Elisa sobre o Mundo. Ao ter conhecimento do caso da Elisa, pensei que poderia ser interessante que os alunos do Curso Livre de Banda Desenhada a conhecessem e desse encontro fossem criados trabalhos de Banda Desenhada que a pudessem ajudar de alguma maneira como projeto do “mundo real”. Assim, a ideia para criar o livro O Mundo de Elisa nasceu de um encontro inspirador entre a jovem autora Elisa Ponte e os alunos do Curso Livre de Artes e outros autores de banda desenhada residentes na Madeira. A Elisa é uma pessoa extraordinária, uma adolescente que tem uma forma muito especial de ver o mundo e tem uma criatividade sem limites. O livro O Mundo de Elisa não só é uma expressão artística, mas também uma forma de promover a conscientização e a sensibilização em relação a temáticas relacionadas com inclusão e a diversidade. Através das páginas desta obra, os leitores são convidados a embarcar em uma jornada de aprendizagem e empatia, seguindo as diversas experiências e reflexões apresentadas pelos seus autores sobre a importância de construirmos uma sociedade mais inclusiva, a partir dos conteúdos da Educação para a Cidadania.
Roberto Macedo Alves: O apoio da Câmara Municipal do Funchal foi fundamental para editar esta obra. Desta forma, foi possível assegurar que a totalidade das receitas provenientes da venda do livro destinam-se a ajudar os tratamentos da jovem Elisa Ponte, auxiliando-a na sua jornada pessoal e artística. Deste modo, não só contribuímos para fortalecer a sua voz e o seu talento, mas iremos permitir que ela continue a criar e a inspirar outras pessoas, ganhando mais qualidade de vida. A iniciativa O Mundo de Elisa representa o compromisso da Livraria Sétima Dimensão e dos artistas envolvidos em utilizar a arte e a banda desenhada como instrumentos de transformação e promoção de valores essenciais para a sociedade. É uma forma de celebrar a criatividade, a amizade e a inclusão, ao mesmo tempo em que apoiamos um talento tão especial como o da Elisa.
Nuno Pereira de Sousa: Qual tem sido o papel do Município do Funchal nos mais recentes lançamentos da Sétima Dimensão?
Roberto Macedo Alves: Não teria sido possível fazer tudo o que já realizamos nestes 20 anos sem o generoso apoio das entidades com quem já estabelecemos parcerias. Por exemplo, não teria sido possível organizar as iniciativas do “24 Hour Comics Day” desde 2005 sem o generoso apoio da Direção Regional de Juventude e a Secretaria de Educação da Madeira, que não só providenciam um local excecional como é o Centro da Juventude do Funchal, uma belíssima quinta do Século XIX, mas também fornecem apoio logístico, pessoal e até comida para os participantes no evento! Já realizamos edições como Os sonhos do Maravilhas, em 2010, que foram concretizadas com o apoio do Club Sport Marítimo e do Dr. Francisco Fernandes, Secretário de Educação na época que a edição foi lançada e autor do argumento desta obra. O livro Os Olhos que Escutam o Mundo, foi uma aposta da Secretaria Regional de Turismo e Cultura no trabalho e no espírito criativo dos artistas da Sétima Dimensão para trazer uma abordagem diferente às edições de BD institucionais, destacando o potencial expressivo e pedagógico da Banda Desenhada. Deixamos um agradecimento muito especial à Secretaria por ter confiado na proposta da nossa equipa para a elaboração desta edição tão importante para nós.
Roberto Macedo Alves: O Município do Funchal, tem sido também um parceiro valioso para a Livraria Sétima Dimensão, pois apoiaram a edição do livro O Teatro. Lugar de(entre) mundos e confiaram na nossa equipa para contar a história do Teatro da forma como foi apresentada nesta obra. É também através do apoio da Câmara Municipal do Funchal que foi possível trazer os artistas de BD que já estiveram na Madeira e que muito nos honraram com a sua presença. Da mesma forma, o livro O Mundo de Elisa: Amizade, Inclusão e Cidadania só foi possível graças ao apoio do Município do Funchal. Contamos ainda com o apoio da Câmara Municipal para realizar diversas iniciativas relacionadas com BD durante a Feira do Livro do Funchal, que permitem dar destaque e visibilidade aos nossos artistas regionais.
Roberto Macedo Alves: O apoio de todas estas entidades, que muito agradecemos, é de extrema importância para o crescimento e reconhecimento da Livraria Sétima Dimensão e dos projetos que desenvolvemos.
Nuno Pereira de Sousa: E, para finalizarmos a entrevista, em que projetos te encontras a trabalhar atualmente?
Roberto Macedo Alves: Neste momento, a trabalhar em vários projetos em simultâneo, não só a finalizar os conteúdos do número 4 da Outermost Comics Edition, mas também a concluir um projeto especial que está a ser desenvolvido com alguns dos nossos artistas do coletivo da Sétima Dimensão – a criação de uma Banda Desenhada com conteúdos adicionais de Realidade Aumentada, baseada no extraordinário episódio das migrações madeirenses para o Hawaii, no final do Século XIX. Entre os anos 1878 e 1913, mais de seis mil madeirenses deixaram a Madeira numa viagem só de ida com destino ao Hawaii, em trajetos que duravam entre 4 e 6 meses, à procura de melhores condições de vida noutro arquipélago. Esta Banda Desenhada, baseada em factos reais, explora alguns detalhes extraordinários de alguns dos protagonistas deste episódio único na história das migrações. Acreditamos que esse projeto poderá providenciar uma leitura diferente para os fãs de banda desenhada e poderá proporcionar uma experiência pedagógica diferente da habitual. Estamos ansiosos para partilhar mais detalhes e temos tudo pronto para lançar este trabalho muito brevemente. Agradeço mais uma vez esta conversa sobre a Banda Desenhada na Madeira e sobre o trabalho que tem sido feito pela Livraria Sétima Dimensão. Estamos comprometidos em enriquecer o panorama da Banda Desenhada regional, divulgando e abrindo caminhos e portas a novos criadores com ideias frescas e interessantes!
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.