Mário Freitas: “Vou continuar a sonhar o impossível”

Mário Freitas: “Vou continuar a sonhar o impossível”

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Entrevista a Mário Freitas, a propósito do lançamento de Há Quem Queira que a Luz se Apague.

Nuno Pereira de Sousa: O Derradé tem vindo a ser, publicamente, um defensor da liberdade de expressão em geral e do humor em particular. Estes tópicos parecem ser importantes para ti ao ponto de idealizares uma BD sobre esta temática. Houve alguns acontecimentos em particular que te motivaram a avançar com este trabalho?  
Mário Freitas: Não serei tão vocal como o Dário quanto a este assunto, mas a limitação da liberdade de expressão é uma coisa que me irrita profundamente. Isso e a falta de sentido de humor, e sabemos bem como isso está associado à estupidez e à ignorância. E se há coisa para a qual tenho zero paciência e para a qual tenho cada vez menos tolerância é para a estupidez. Infelizmente, vivemos num mundo cada vez mais repleto de imbecis e de inúteis com voz, em particular nas redes sociais. Por isso, não, não houve nenhum acontecimento em particular, antes sentir um agravar destas situações. E sentir que boa parte das pessoas, dadas as devidas circunstâncias, abdicaria facilmente da liberdade e do livre arbítrio, em troca da eterna promessa de “segurança”.

Nuno Pereira de Sousa: Quando idealizaste esta narrativa, surgiram-te imediatamente os 3 profissionais de banda desenhada evocados na obra?
Mário Freitas: O Dário e o Álvaro, sim, porque isto é a minha homenagem a eles, e à coragem e irreverência de fazer humor, que considero provavelmente o estilo mais difícil de escrever bem. Já o Rui foi um acrescento tardio, porque faltava dar um rosto ao Supremo Líder. E, neste caso, é apenas isso, um rosto, aproveitando a forma magistral como o Dário captura aquela expressão meio seráfica do editor da Polvo. Podia ter sido a minha cara, podia ter sido uma genérica criada de propósito para a história, mas tive uma epifania e foi o Rui Brito o escolhido.

Nuno Pereira de Sousa: Quando convidaste o Derradé para desenhar uma banda desenhada em que é também um dos protagonistas, já tinhas o argumento praticamente finalizado ou fizeste o convite numa fase mais precoce do projeto?
Mário Freitas: O Miguel Jorge, editor da antologia Apocryphus, convidou-me para escrever uma história para um número da revista que entretanto acabou por não sair. O tema era “O humor já não é o que era” e, imediatamente, pensei no Dário para fazer isso comigo. Fiz-lhe a proposta, ele aceitou logo depois do segundo olho negro, e “fui para casa” pensar numa história. Menos de um mês depois, mandei-lhe o argumento completo das 16 páginas, e ele diz que até chorou depois de o ler, receio que não pelas melhores razões. Como tinha lançado o meu selo “Mário Breathes Comics”, achei que faria sentido ser eu a editar isto; falei com o Miguel Jorge, que percebeu perfeitamente a minha opção, e amigos como dantes.

Nuno Pereira de Sousa: O que é que o Derradé trouxe de novo à narrativa? O que te surpreendeu?
Mário Freitas: Honestamente, nada me surpreendeu, porque conhecia muito bem o trabalho dele, e escrevi o guião a pensar exatamente no estilo figurativo e narrativo do Dário. É claro que um contador de histórias como ele acrescenta sempre algo, sem subverter nada, porque domina os tempos narrativos e os timings dos gags, além das expressões faciais e corporais das personagens, que são sempre um deleite no traço dele. Os meus argumentos são sempre muito detalhados e até visuais, mas dou sempre liberdade aos ilustradores para sugerirem alguma alteração às sequências, seja partir uma vinheta em duas ou condensar duas em uma. É para isso que servem os esboços preliminares e a conversa entre os autores, e o fundamental é tudo ficar o melhor possível, dentro das nossas capacidades.

Nuno Pereira de Sousa: Apesar do editor Rui Brito, graficamente próximo do Supremo Líder, não ser conhecido como uma pessoa sempre sorridente e a gargalhar, ao longo das décadas tem vindo a publicar obras de banda desenhada de humor de diversos autores, entre muitos outros géneros. Na vida real, consideras que é um dos que lutam contra o Supremo Líder?
Mário Freitas: Ah, sem qualquer dúvida! Como disse atrás, a escolha da cara do Rui para representar o Supremo Líder foi uma piada e uma questão de mera ilustração. Nada ali pretende ser o verdadeiro Rui, ao contrário do Dário e do Álvaro, que retratei exatamente como os imaginaria numa situação daquelas – o entusiasmo e uma certa candura do Dário, o cinismo militante e o humor ácido do Álvaro; esses sim são eles próprios. De resto, claro que sim, que o Rui, como editor de BD e promotor da cultura, é um combatente do bem, daqueles que andam há décadas na luta, sempre em oposição aos “Supremos Líderes” que por aí apareçam.

Nuno Pereira de Sousa: Foi a primeira vez que colaboraste com a Beatriz Duarte. O que gostavas de destacar do seu trabalho?
Mário Freitas: O entusiamo, a energia de quando se é jovem, um bom olho para a paleta de cores e, uma coisa fundamental, a capacidade de escutar o editor e as suas sugestões e opiniões. Estou muito curioso para ver o que ela está a fazer no outro livro que o Dário vai lançar na Amadora pela Polvo.

Nuno Pereira de Sousa: Há várias obras de banda desenhada evocadas ao longo da narrativa, sendo talvez a mais óbvia Watchmen. Porque quiseste dar destaque a essa BD?
Mário Freitas: Não quis e foi casuístico. Presumo que te refiras aos guardas e os emoticons com o sorriso, mas hás de ter reparado que os guardas têm também outras expressões. Pretendi transmitir que facilmente nos podemos transformar em autómatos tristonhos sem ambição, ou em meros fantoches que se animam e riem com as coisas mais inanes. Se há um piscar de olho a alguma BD, é aos Estrumpfes; já reparaste nos pijamas do Dário e no que simbolizam?

Nuno Pereira de Sousa: Há uma mensagem secreta na capa. Mas, quem não der por ela, encontra-a no miolo. Qual é o seu propósito, para além do design?
Mário Freitas: Não é nada secreta, até porque aparece logo, bem legível, na 2.ª página do livro. Senti que faltava ali qualquer coisa no centro da capa e testei colocar ali um texto em verniz localizado, e somente em verniz. Isto deu até um episódio curioso, porque o pessoal da gráfica ligou-me muito preocupado, porque no ficheiro do verniz localizado estava lá uma coisa que não aparecia no desenho da capa. Pois não, e era de propósito, num daqueles toques extra que aprecio ter no design das edições.

Nuno Pereira de Sousa: Há uma série de eventos próximos onde a obra vai ser apresentada, com direito a  autógrafos dos autores. Onde e quando vão ocorrer?
Mário Freitas: Vamos estrear oficialmente a tournée com o lançamento na Kingpin Books, em Lisboa, no dia 23, às 16h00. Uma semana depois, dia 30, estaremos às 17h00 na Feira do Livro Independente da Freguesia de Arroios, que se realiza este ano no Mercado de Arroios. No dia seguinte, 1 de outubro, vamos ao Fórum Fantástico às 17h10, e será um prazer voltar à Biblioteca Orlando Ribeiro, tão querida para mim, porque organizei lá vários anos o Festival Anicomics. Depois, dia 3, estaremos a partir das 20h00 na Tertúlia BD de Lisboa, no Restaurante Maracanã, entre Picoas e Saldanha. Ficam a faltar as datas para o AmadoraBD, onde estaremos em força, claro.

Nuno Pereira de Sousa: Esta é a segunda banda desenhada da chancela Mário Breaths Comics. Como foi a receção da primeira, que teve uma génese muito particular?
Mário Freitas: Ui, isso! A Polaroid em Branco deu para tudo… Desde rasgados elogios ao arrojo e à qualidade literária do livro, até insultos pela utilização da Inteligência Artificial com argumentos de que eu não tinha criado nada. De facto, o ato criativo é uma coisa que dá pano para mangas, mas de uma coisa tenho a certeza, há ilustradores medíocres que não percebem que a escrita, entre outras coisas, também é criação; para além de toda a manipulação e sequenciação de imagens que fiz para criar a história. Lá está, “criar”. Volto a repetir, para quem ainda não me ouviu sobre isto – não “roubei” trabalho a nenhum ilustrador humano, porque A Polaroid em Branco surgiu quando estava a fazer experiências no Midjourney. Toda a narrativa está, aliás, imbuída dessas experiências, e só dessa forma seria possível criar uma histórias destas. Sendo a primeira BD portuguesa a ser feita desta forma incomum, tive direito a aparecer nos jornais, revistas e até no Jornal da Noite da SIC, e tudo isto ajudou a vender o livro, que está praticamente esgotado.

Nuno Pereira de Sousa: E o que podes revelar sobre a já anunciada terceira obra de Mário Breaths Comics?
Mário Freitas: Chama-se Vinil Rubro e tem uma arte lindíssima da Alice Prestes, uma ilustradora e designer que nunca tinha feito BD antes. Vi o trabalho dela no Instagram, desafiei-a para fazermos uma BD, e aceitou de imediato. Não tinha nada pensado de antemão, a Alice disse-me que gostava de fazer uma coisa mais negra, e foi assim que congeminei a história visceral que terão oportunidade de ler. Como já adiantei num teaser que publiquei nas redes sociais, é um conto sobre as incertezas da vida; sobre as memórias que a música nos traz; sobre as feridas abertas que nos corroem e o lastro que transportamos; e sobre o desejo egoísta, o maior dos manipuladores.

Nuno Pereira de Sousa: Onde se encontram à venda estas obras da Mário Breath Comics?
Mário Freitas: A nova, por ora, na Kingpin Books, mas em breve terá distribuição nacional. Pelo formato, não será fácil expor bem nas livrarias generalistas, mas pelo menos nas respetivas lojas online estará de certeza. De qualquer modo, mesmo que sejam de fora de Lisboa, é simples – a partir de dia 23 de setembro, basta ir a kbportugal.pt e encomendar.

Nuno Pereira de Sousa: Em que te encontras a trabalhar no momento?
Mário Freitas: Para além dos mencionados, sairá na Amadora a versão integral da Fórmula da Felicidade, do Nuno Duarte e do Osvaldo Medina, que vai incluir um epílogo novo de 16 páginas, soberbamente colorido pela Catarina Oliveira, que também pintou a nova capa. Depois da óptima recepção que A Vingança do Conde Skarbek teve o ano passado, fiz novo livro para a Arte de Autor, 1629 vol.1, do Dorison e do Montagne, onde me encarreguei da tradução, legendagem, paginação e design do livro, o pacote completo. É sempre um prazer trabalhar com a Vanda [Rodrigues], a editora, que tem total confiança em mim e dá-me quase carta branca. Fiz também trabalho do género para o meu camarada Miguel Peres, uma BD curta intitulada “A Foz do Esquecimento”, que sairá também no AmadoraBD. Entretanto, tenho outros dois projetos pessoais em andamento – um deles é o eternamente adiado O Último Pollock, a minha abordagem a um estilo mais “romance gráfico”, uma BD de fundo que está a ser ilustrada pela Patrícia Palma, mais uma feliz descoberta minha no Instagram. O outro chama-se O Homem que Sonhou o Impossível, um projeto de ambição internacional, cujo desenho e cores estão nas mãos de um ilustrador brasileiro de enorme talento, o Lucas Pereira, que tinha já feito a capa da edição portuguesa de O Pescador de Memórias. E uma curiosidade – ele é marido da Majory Yokomizo, que desenhou os interiores de O Pescador de Memórias. É uma história pensada para um formato grande e arrojado, o antigo formato “Treasury” dos anos 70, e tudo na narrativa o vai refletir. Pus literalmente a carne toda no assador e, se falhar, espero pelo menos falhar com estrondo. Sobre o que é? É sobre Jack King, um velho diferente dos outros, que passa os seus últimos dias num lar confortável, por onde continua a espalhar a sua garra e a sua rara aptidão para contar histórias. Mas alguém mexeu na biblioteca do lar, e isso vai começar a refletir-se na memória e no estado de espírito do velho Jack. Está previsto para maio do ano que vem e, depois de o lerem, vão perceber o quão próximo isto está, tematicamente, do livro que fiz com o Dário. No fundo, boa parte da minha obra gira à volta de uma coisa – o poder da imaginação. Assim foi em Super Pig: O Impaciente Inglês; assim foi em Fósseis das Almas Belas; e assim será para o novo Há Quem Queira que a Luz se Apague e para os dois que se seguem. Por mim, a luz jamais se apagará, e vou continuar a sonhar o impossível. Ou, pelo menos, a tentar.

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