
Ilan Manouach: “Para quê contratar artistas de banda desenhada se a banda desenhada se pode desenhar a si mesma?” Argumentos em defesa de banda desenhada criada com I.A.
Introdução
Introdução de Pedro Moura ao artigo “Para quê contratar artistas de banda desenhada se a banda desenhada se pode desenhar a si mesma?” da autoria de Ilan Manouach:
Ilan Manouach é um artista de artes visuais, músico e autor de banda desenhada de origem grega, baseado em Bruxelas. O seu trabalho nesta área que nos é querida tem se expressado através dos mais diversos objectos de apropriação, détournements e experimentações formais e materiais. Mais recentemente, tem sido um dos mais estimulantes pioneiros no uso de processos de machine learning para a criação de banda desenhada, colaborando com engenheiros para a fundação de programação e algoritmos próprios. De entre as suas produções neste capítulo, destaque-se Le VTT comme je l’aime, Neural Yorker e o portentoso romance gráfico Fastwalkers, co-editado, entre outras, pela portuguesa Chili Com Carne.
– Pedro Moura
Igualmente investigador académico, docente e artista “globetrotter”, foi co-editor do volume Chimeras. Inventory of Synthetic Cognition, um fundamental guia de temas e autores internacionais dedicados aos vários campos estimulados pela emergência da dita “inteligência artificial” (Onassis Foundation: 2022). Mais recentemente, foi publicado um volume académico pela Routledge, intitulado Ilan Manouach in Review. Critical Approaches to His Conceptual Comics, editado por mim mesmo.
O presente ensaio curto, publicado originalmente em francês no jornal belga valão Le Vif, e cuja versão portuguesa foi editada com o autor, é necessariamente polémico, dada a “paixão” que este assunto tem suscitado. O seu foco é a obra própria do autor, associada à esfera industrial da banda desenhada, mas tem consequências e impacto em outras áreas. Nesta dimensão, a banda desenhada não tem de pedir nada de emprestado em termos de grau de desenvolvimento conceptual, técnico, político, a outras áreas. Esperamos que este possa ser um ponto de partida para uma discussão informada, balizada, e necessária.

“Para quê contratar artistas de banda desenhada se a banda desenhada se pode desenhar a si mesma?” – Ilan Manouach
Tradução: Pedro Moura
A emergência de ferramentas digitais online que convidam os seus utilizadores a providenciar indicações textuais (conhecidas como “prompts”) para gerar imagens abriu as comportas à discussão sobre a democratização da criação digital. O debate associado ao potencial impacto das tecnologias de inteligência artificial (IA) sobre as indústrias culturais não está isento de opiniões polarizadas, intensas emoções e aporias éticas. É nesta encruzilhada de contenção que a indústria da banda desenhada surge como um caso de estudo emblemático. Muitos dos seus agentes expressam uma profunda inquietude em relação à banda desenhada criada por IA e o peso que estas tecnologias emergentes terão sobre as suas tradições artesanais, o seu ecossistema vibrante e o delicado equilíbrio dos seus frágeis mercados.
Comecemos por evitar equívocos colocando desde logo de parte a denominação, errónea e mal-formada, de “BD IA”. Esta expressão, quando empregue sem qualquer nuance, perpetua o estereótipo segundo o qual os algoritmos conseguem produzir banda desenhada, para mais significativa e impactante, sem a intervenção da determinação humana ou nas quais a agência humana é reduzida a uma quase insignificância. Uma descrição deste teor quase sempre falha na consideração dos complexos intercâmbios da criatividade humana num meio com uma extenssíssima história de determinações humano-maquínicas, nas quais os instrumentos (e, hoje em dia, as tecnologias computacionais) estão inexoravelmente ancoradas em campos políticos, sociais e económicos. Em vez desse termo, preferimos utilizar, aqui, na Bélgica, o termo “banda desenhada sintética”, que reconhece o modo como a banda desenhada foi sempre produto de uma natureza agregada da produção e difusão de saberes, e ainda mais num momento em que estes estão resolutamente integrados nos contextos de informação intensivos da nossa era digital.
A banda desenhada sintética consiste em obras cuja produção assenta sobre uma arquitectura operativa de processos tecnológicos de síntese de imagens, geração de texto e correlações multimodais – o processo de criar correspondências entre textos e imagens. A sua produção depende de uma série de operações discretas, descentralizadas e, até certo ponto, assíncronas, que devem ser compreendidas no quadro daquilo que o cientista de informática Rudy Rucker apelida de computação, i.e., qualquer “processo que obedece a um conjunto finito de regras descritíveis”, envolvendo operações tais como cálculo, processamento e transformação de informação, empregando diversos substratos, sejam estes digitais ou de outra natureza. Consequentemente, as suas formas, as suas características materiais, e as suas operações ficam confiadas a sistemas técnicos programados para gerar todo um espectro infinito de resultados distintos e originais, sustentados por conjuntos de dados anotados. É impossível não insistir na importância da computação na criação destas obras, uma vez que esta é instrumental na apreensão e construção dos encontros estéticos facilitados por essas obras.
Use os botões para navegar entre as páginas do artigo.

Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.
Aqui no Brasil, coincidentemente, agora mesmo, numa premiação da área literária chamada “Prêmio Jabuti”, uma ilustração de capa de uma edição atual do livro “Frankeinstein”, feita por um designer brasileiro que contou com o Midjourney, acaba de ser desclassificada num concurso, após o autor ter ganho o 1º lugar! Após isto ter sido revelado (e ele assinou seu nome mais o Midjourney, não sendo, portanto, culpa dele), houve uma polêmica dantesca e a entidade do concurso achou melhor desclassificar a ilustração, infelizmente (https://www.cartacapital.com.br/cultura/premio-jabuti-desclassifica-livro-ilustrado-com-inteligencia-artificial/).
*Publico aqui o mesmo comentário que deixei no blog LerBD*
A tradução e publicação deste artigo em português num ecossistema de divulgação de banda desenhada é um iniciativa salutar, que louvo e espero ver repetida, não só pela tua mão, mas como uma prática generalizada, que conte com vários contribuidores. Kudos [a ti, Pedro, e ao Bandas Desenhadas pela publicação deste artigo. Espero que se torne prática generalizada.]
Quanto ao sumo do artigo (que já queria ter lido na versão em francês, mas não consegui traduzir através das ferramentas do Google), ele peca por não engajar, como diz pretender, com essa discussão das potencialidades da IA (ou da “criação sintética”, como faria mais sentido, de facto, chamar-lhes, caso fosse essa a preocupação do artigo).
Não deixa de ser revelador que, num artigo que pretende descrever as potencialidades dessas ferramentas, uma boa parte dele (cerca de metade) seja a essencializar, com recurso várias “palavrões” e livre-associações, os críticos das ferramentas de IA a discursos censórios, “pouco esclarecidos” e persecutórios.
De facto, à semelhança dos Luditas, mas contrariamente ao que referes nesta introdução ao artigo, a maior parte dos críticos da IA não se focam, parece-me a mim, nas ferramentas disponibilizadas, mas na ameaça maior que elas sinalizam; essa vislumbra-se nas utilizações para as quais estas tecnologias estão já a ser aplicadas, com implicações nas práticas laborais e até na propriedade dos próprios corpos de cada trabalhor (é ver a questão central que motivou a greve dos actores em Hollywood, que agora terminou). Tal como os Luditas, as pessoas que criticam mais vocalmente o uso da IA parecem-me ver a bigger picture, no sentido em que criticam não os instrumentos em si, mas a ameaça que eles representam à sua existência; neste caso, a erradicação de uma massa significativa de trabalhadores da indústria que, em situação que é já precária, se vêem atirados para a frente do camião do progresso.
Tenho mais a dizer sobre o artigo do Ilan Manouach, que me deixou um amargo de boca difícil de lavar, mas fá-lo-ei com tempo e em plataforma que me permita, com mais coerência, desmontar os argumentos por ele apresentados, que me parecem, muitas vezes, não só desonestos, como indicadores de um aceleracionsmo liberal aterrador.
To be continued!