Resposta ao artigo de Ilan Manouah sobre IA, por Hugo Almeida.
O Bandas Desenhadas publica um artigo da autoria de Hugo Almeida, que consiste numa resposta ao artigo de Ilan Manouach “Para quê contratar artistas de banda desenhada se a banda desenhada se pode desenhar a si mesma?“.
Por Hugo Almeida
Dia 11 de Novembro, o Bandas Desenhadas publicou um artigo do artista de banda desenhada e investigador Ilan Manouach, traduzido por Pedro Moura. Nele, Manouach desmistifica a ideia de que os modelos de inteligência artificial, tal como existem, poderiam substituir a intervenção humana no processo criativo; afinal, a mecanização sempre fez parte das práticas da banda desenhada. Parafraseando o artigo, a produção de banda desenhada estabeleceu-se, desde as origens do meio, como uma relação ciborgue entre autores de BD e máquinas. No entanto, no balanço de um apoio entusiástico a estas tecnologias emergentes, acaba por descaracterizar a resistência que se sente à aplicação generalizada de IAs, passando ao lado das consequências disruptivas destas tecnologias. Estas têm e terão impactos que merecem ser endereçados, tanto nas condições laborais dos trabalhadores da indústria da banda desenhada, como também, numa perspectiva mais alargada, no ambiente social e político no qual os media visuais são actores cruciais. Talvez o contexto original de publicação explique porque é que o artigo é tão dirigido para questões sobre a legitimidade da IA como ferramenta artística. De qualquer forma, o artigo suscita questões filosóficas pertinentes sobre a ontologia e prática de banda desenhada, face à automatização da produção de texto e imagem.
Resumidamente, o artigo defende as ferramentas de IA daqueles que consideram a arte produzida com recurso à tecnologia como fraudulenta, com base em essencialismos românticos de quem vê a arte como a exteriorização de verdades intrínsecas ao artista, ou como último bastião da distinção entre o humano e o não-humano. Apesar de inicialmente providenciar um panorama matizado da relação entre banda desenhada e automatização, Manouach acaba por responder aos opositores da IA com determinismo tecnológico. Diz o autor que a automatização por modelos generativos é apenas um desenvolvimento consequente da história da banda desenhada, tal como esta foi definida pela incorporação de processos de produção industrial e reprodução mecânica. Contestar este desenvolvimento é, portanto, absurdo ou hipócrita, dado que compromete a lógica de máxima eficiência intrínseca ao meio. A conclusão (inevitável? Desejável? Esperada?) deste processo é, então, a automatização crescente do processo de criação, conforme os modelos de IA parecem prometer.
Eu parto do princípio, tal como Manouach parece partir no início do artigo, que a banda desenhada, tal como a tecnologia, tem, no mínimo, uma componente de construção social; não são apenas as características do meio a qualquer momento que determinam o seu desenvolvimento. Os seus actores tomam decisões sobre o que a banda desenhada é ou pode ser: os trabalhadores artísticos, as editoras e, cada vez mais, os grandes conglomerados de media que, na fúria de colonizar todo o imaginário popular, tomam posse de editoras de BD como incubadoras de propriedades intelectuais, que podem ser posteriormente exploradas de forma lucrativa através de estratégias transmedia. Confesso que, para mim, é difícil imaginar que a automatização, levada às suas últimas consequências num contexto industrial, não implique, no máximo, a remoção do artista da linha de montagem, ou, no mínimo, a desvalorização financeira do seu trabalho. A IA não é apenas uma tecnologia: é também, no contexto da nossa sociedade, um aparelho retórico conveniente para o desmantelamento dos direitos laborais. Para os artistas que, como Manouach, operam fora da indústria e, portanto, da lógica de produção de mais-valia, a automatização representa apenas mais uma ferramenta num leque de opções para a exploração conceptual e artística do meio. Portanto, não é como se a IA fosse o fim da arte. Essa não é a questão e ainda não é desta que nos livramos dos artistas de banda desenhada. Mas ao desconsiderar os possíveis impactos negativos dos modelos generativos na indústria, Manouach parece assumir implicitamente o aceleracionismo basal que satiriza com o título do artigo, “Para quê contratar artistas de banda desenhada se a banda desenhada se pode desenhar a si mesma?”, que o autor, ao mesmo tempo, deixa claro não ser um resumo da sua opinião e experiência, mas sim uma caricatura das reacções epidérmicas dos detratores da IA.
Essa caricatura é útil para percebermos a função retórica que a inteligência artificial tem tido na nossa relação com tecnologias digitais, sujeitos como estamos a directivas algorítmicas cada vez mais opacas. Mais uma vez, em nenhum momento Manouach se compromete com a visão distópica do título, e até a contradiz; mas ao representar a crítica como se fosse monolítica, livra-se de ter que confrontar os problemas levantados por processos de automatização digital. O que é que quer dizer “a banda desenhada desenhar-se a si mesma?” Corremos o risco de fixar o conceito historicamente contingente de banda desenhada a formas de produção e difusão específicas? Ao mesmo tempo que defende um historicismo prescritivo—ou seja, levar a mecanização às suas últimas consequências é apenas respeitar o desenvolvimento da banda desenhada como arte reprodutível—, o autor propõe também no título, sarcasticamente, que se reveja o conceito de banda desenhada com base na sua condição contemporânea, nomeadamente, a digitalização de toda a banda desenhada em bases de dados que alimentam os modelos de IA. É isso que quer dizer “a banda desenhada desenhar-se a si mesma”: assumir que a autonomização do processo de produção também autonomiza o próprio conceito de banda desenhada. É como se agora fosse um organismo capaz de se reproduzir a si próprio. Estamos perante a reificação da banda desenhada, que passa a ser, graças à sua forma específica como dataset sujeito a digestão algorítmica, uma “coisa no mundo” que precede a forma que lhe damos como autores a qualquer momento. A caricatura que o artigo desconsidera logo à cabeça não é, na verdade, assim tão descabida, se considerarmos que é uma concepção conveniente para grandes conglomerados de media, que poderão um dia, em consonância com as suas normas cada vez mais inflexíveis, reduzir a banda desenhada aos padrões médios do dataset e, ao mesmo tempo, divorciar-se de quaisquer responsabilidades sobre o que publicam, porque, enfim, foi a banda desenhada que se desenhou a si mesma.
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Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.