Crítica ao filme Pobres Criaturas, realizado por Yorgos Lanthimos.
Uma das frases mais citadas de Alasdair Gray, conspurcada em fórmula de autoajuda ou diminuída a ilustração de posters “motivacionais”, é precisamente retirada do romance de 1992, Poor Things: “A life without freedom to choose is not worth having”, “Não vale a pena viver uma vida sem liberdade de escolha”. Poderemos dizer ser este o assunto da versão cinematográfica de Yorgos Lanthimos, com o título português de Pobres Criaturas (2023)? Se considerarmos a produção anterior deste cineasta, vislumbrar-se-ão assuntos e mecanismos recorrentes: as tensões entre a liberdade das suas acções no mundo e a consciência da própria pessoa, a imposição de regras externas (societais, parentais, expectativas) e o escopo da vontade (interna, pulsional, indomável), ou por outras palavras (gregas, já agora), entre pólis e demos. Se a liberdade de acção for total, haverá escolha? Mas e se a escolha for coartada até a um ponto de obrigação na decisão, haverá nela liberdade?
O filme tem uma estrutura relativamente simples. Uma personagem feminina, Bella Baxter, vai descobrindo o mundo à medida da sua educação pela figura parental. O choque da aprendizagem da sua própria história leva-a a aceitar algumas regras mas igualmente à fuga, que a faz atravessar o mundo, para o descobrir largo, imenso, aberto. E depois regressa a casa, decidida ao equilíbrio entre as expectativas dos outros e as suas.
Quando se fala em adaptações, sejam de que meios de partida forem para que meios de chegada forem, e por vezes, como veremos, poderá mesmo ser um trânsito no interior de um só meio, há toda uma série de perguntas que somos tentados a colocar. Devemos, todavia, evitar que a resposta negativa a algumas dessas perguntas possuam em si mesmas um juízo de valor sem discussão. Por exemplo, é muito fácil perguntarmos, numa adaptação de obra literária para uma cinematográfica, se há “fidelidade”. Mas essa é uma operação que muitas vezes confunde a fidelidade da passagem dos “episódios narrativos”, os elementos constitutivos da intriga, ponto por ponto, com a do seu assunto e tratamento, isto é, o seu fito mais filosófico. Uma atitude mais interessante será desdobrar essa pergunta em duas, relacionadas mas distintas no seu foco. A primeira é: persegue a nova versão as mesmas questões e chega às mesmas respostas que a obra original? A segunda é: é a nova versão uma obra de qualidade da sua própria disciplina como a original seria na sua?
Para responder à segunda, podemos relembrar dois exemplos muito simples: The Birds de Alfred Hitchcock (1966) e Die Hard de John McTiernan (1988). O realizador britânico pegou num conto da escritora Daphne Du Maurier, respeitada sobretudo em círculos em torno de narrativas de horror psicológicas, e cuja fama se foi multiplicando graças ao cinema. E o romance thriller de Roderick Thorp, apreciado pelos cultores do género, daria origem a um dos action films charneira dos anos 1980. Mas penso que será consensual dizer que, no caso dos textos fílmicos, estamos perante obras maiores (mesmo que queiram reduzir, sobretudo Die Hard, a um circuito limitado pelo género, mercado, etc.), ao passo que no que diz respeito aos textos literários se tratam de exemplos competentes, mas menos extraordinários, dos seus campos respectivos.
Use os botões para navegar entre as páginas do artigo.
Autor, crítico, curador e docente de banda desenhada…