Ordinário és tu

Ordinário és tu

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Análise do livro Ordinário, da autoria de Rafael Sica.

Ordinário de Rafael Sica é algo de extraordinário pelas mais diferentes razões. Em primeiro lugar, por ser uma obra que destoa no mercado editorial nacional. Diríamos que em qualquer altura, mas podemo-nos concentrar em 2023.

O ano passado é mais um exemplo da habitual ausência de qualquer plano por parte das editoras portuguesas no que toca à edição da melhor banda desenhada brasileira. Apesar de tal, foi editado um reduzido número de propostas, cujo resultado quantitativo não será o pior dos anos recentes, embora todos saibamos que a estatística de pequenos números não tem qualquer validade. Algumas dessas obras são fruto do acaso no que toca ao país de origem (como a A História de Buda – Adaptação de Manga, da autoria do brasileiro Mauro N. Nakamura e do japonês Hisashi Ohta, pela editora Self, ou Nós na Tira, da autoria de Rodrigo Leão, pela editora FA), diretamente relacionados com os propósitos de cada editora. Por outro lado, a outrora prolífica coleção Romance Gráfico Brasileiro da Polvo ficou-se pela edição de um único título, o seu 33.º, Lovistori, da autoria de Sandro Lobo e Alcimar Frazão. Registe-se que ainda houve a edição uma obra portuguesa inédita que compilou trabalho pré-existente – 50 Anos de Humor, de Angeli, pela Documenta.

Curiosamente, em paralelo, a cooperativa editorial A Seita dedicou ao Brasil três das suas publicações de 2023, muito distintas – Em Busca do Tintin Perdido de Ricardo Leite, Turma da Mónica: Laços de Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi e Ordinário de Rafael Sica. Como é característico da cooperativa supramencionada, estes 3 títulos pertencem a projetos distintos, com diferentes editores.

No caso de Ordinário, ao contrário de outros títulos de A Seita, com um grande número de editores associados, conta apenas com dois editores, Margarida Mesquita e Júlio Moreira (cf. 6 editores em Turma da Mónica: Laços e 5 editores de Em Busca do Tintin Perdido). Modesta também é a tiragem da obra, limitada a 300 exemplares. Talvez especialmente modesta se considerarmos se tratar, ao contrário da edição brasileira original, de uma edição bilingue (língua portuguesa e língua inglesa), o que nos poderá dar a indicação de que almeja alcançar não somente o leitor português mas, potencialmente, o de qualquer cidadão do nosso planeta.

Sendo a obra de Rafael Sica um conjunto de tiras mudas, isto é, sem recurso a texto, a dificuldade da compreensão da língua estava, desde a génese do trabalho do autor, completamente ultrapassada. Na verdade, o bilingue da edição (atente-se na palavra Ordinary na capa, apesar de menos destacada que a portuguesa, mas igualmente presente na lombada) prende-se, para além de título e ficha técnica, com o prefácio e posfácio presentes na edição.

A edição de banda desenhada muda estrangeira no nosso país é sempre uma aposta com vantagens e desvantagens. Por um lado, há uma diminuição dos custos da produção da obra, uma vez que a tradução e legendagem são inexistentes. E, por outro, se a editora portuguesa obtém os direitos para diferentes países, tem a possibilidade de comercializar a obra para além do pequeno nicho nacional. Como desvantagem, tem o facto de se tratar de uma obra cuja publicação original pode ter chegado facilmente aos leitores do nosso país (e outros) via importação, mesmo que não dominem a língua praticada no país do autor, dada a linguagem textual ser inexistente; ou seja, que parte do potencial público leitor já tenha adquirido a obra em versão estrangeira ou que o prefira fazer em detrimento da edição portuguesa devido a características da edição e/ou preço.

No caso das obras de banda desenhadas brasileiras, a desvantagem supracitada é quase teórica, ao contrário de outras provenientes de mercados anglófonos e francófonos, dado a acessibilidade dos portugueses a obras de BD brasileira no nosso país ser mais difícil, apesar do leitor português estar habituado a ler banda desenhada na norma brasileira da língua portuguesa.

E mais uma questão extraordinária que podemos citar é a edição de um álbum de tiras. Na verdade, o último boom editorial de álbuns de tiras no nosso país iniciou-se nos anos 90 com Calvin & Hobbes pela Gradiva, que gerou, quer naquela editora quer noutras, uma grande quantidade de séries norte-americanas publicadas em Portugal durante quase uma década. Passados estes anos, a edição de álbuns de tiras é uma verdadeira raridade.

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