A Passagem Impossível: O Legado

A Passagem Impossível: O Legado

a passagem impossível

Análise de A Passagem Impossível.

Antes da análise propriamente dita a A Passagem Impossível, revelo que, nos últimos tempos, o cheiro a torradas funciona em mim como uma máquina do tempo que me faz regressar à infância.

É isso e ouvir falar do nome José Ruy.

Ora, com o seu álbum póstumo entre mãos, este A Passagem Impossível tem o duplo condão de me fazer regredir para tempos de antanho e, simultaneamente, manter-me surpreendentemente agarrado aos dias que correm.

Passo a explicar. Quando era criança, o meu gosto pela Banda Desenhada já era preferência assumida. Mas, na época, não havia ainda o hábito de se convidarem autores da área (nacionais e estrangeiros) para sessões de autógrafos. Por isso, o contacto com tais autores era inexistente. No entanto, sentia-me um privilegiado pois, sempre que ia visitar a minha família à sua editora, lá estava ele, o autor de lápis rápido, capaz de, em segundos, captar os traços e tiques de todos os colegas e desenhar um gag que oferecia aos protagonistas. Em cada departamento da editora havia sempre novos desenhos, novos gags pendurados em placards e até emoldurados. E eu divertia-me a descobri-los, com aquela avidez de criança que quer sempre mais. E, para mais, eu ainda podia falar com o autor e, por vezes, até assistia à criação de mais um desenho. Foi algo que me marcou e que ainda hoje recordo com saudade, esses tempos em que pude crescer ao lado de José Ruy.

Muitos anos mais tarde, quando resolvi que a minha Bedeteca não estaria completa sem os autógrafos dos meus desenhadores favoritos, o primeiro a quem fui bater à porta foi José Ruy.

Chegado agora aos dias que correm, é com muito carinho que leio a última obra do Mestre. E não é apenas pela saudade, mas também porque esta edição de A Passagem Impossível é um must absoluto para todos os amantes da Nona Arte. O trabalho feito pela Ala dos Livros é, a todos os níveis, exemplar e permite pela primeira vez (em Portugal), segundo creio, assistirmos aos trabalhos preparatórios da obra, ao plano inteligente que o autor engendrou para que o álbum fosse publicado e ainda aos estudos de personagens que fez.

É sabido que Hergé deixou uma última obra de Tintim por terminar (Tintim e a Alfa-Arte). Não lhe conhecemos o fim e nunca conheceremos. Mas José Ruy não permitiu que tal acontecesse com A Passagem Impossível. Mesmo que a tinta dos seus pincéis não tenha ornado todas as 104 páginas da obra, o carvão dos seus lápis cobre todas as vinhetas e o seu tipo de letra único conta-nos a história até ao último balão.

A Passagem Impossível ou O relato da extraordinária viagem do navegador português David Melgueiro que no século XVII, ao comando de uma embarcação holandesa e tal como o testemunhou o Seigneur de la Madalène em carta dirigida ao Conde de Pontchartrain, rumo a Norte e realizou a travessia pela Passagem do Nordeste é uma obra única, mas antes de se ver porquê…

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Vamos à história!

Estamos no Ano da Graça de 1660. Os carregadores de liteira correm apressados pelas ruas de Tanegashima, no Japão. Dentro da liteira vai o Sr. Rutger, um rico comerciante neerlandês que pretende embarcar na nau “Padre Eterno” com destino à Europa. A nau está a ser carregada e aparelhada e Rutger é recebido por Lohan, o imediato.

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O capitão da nau neerlandesa é o português David Melgueiro e não se encontra a bordo. Antes está numa insignificante casa de chá a tomar saké com um grupo de amigos japoneses. Um deles avisa-o que a rota do Cabo da Boa Esperança é desaconselhável devido aos ataques de piratas que esperam pelas naus carregadas vindas do Oriente. Melgueiro fica apreensivo pois não conhece rota alternativa. Mas um dos amigos fala-lhe da rota pelo Estreito de Anian (o actual Estreito de Bering), uma rota que todos acham impraticável e o Estreito intransponível. Mas o japonês informa Melgueiro que tem uns mapas que o podem ajudar a dobrar a passagem impossível.

Com a permissão da companhia neerlandesa, proprietária da nau, Melgueiro vai arriscar a perigosa Passagem Nordeste, até então nunca realizada. Com ele leva a sua tripulação, quatro passageiros (entre os quais duas mulheres, que nunca são bom agoiro na mentalidade dos marinheiros) e Malik, um precioso inuíte que servirá de tradutor dos povos que vão encontrar.

A companhia neerlandesa só impôs uma condição: manter o sigilo da nova rota. Se o feito for conseguido, as Terras Baixas terão uma rota alternativa desconhecida das outras nações europeias.

Com o desconhecimento da maior parte da tripulação e de todos os passageiros, a nau “Padre Eterno” parte para uma das maiores e mais perigosas aventuras da Era dos Descobrimentos.

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Como já se disse, A Passagem Impossível é uma obra póstuma de José Ruy. Mas, muito mais do que isso, é um legado, a todos os níveis, para o mundo da Banda Desenhada, das artes, da edição e até do humanismo.

O tema das Descobertas e das viagens a elas associadas baseia-se muito nas crónicas que os portugueses foram escrevendo ao longo das intentonas aventurosas que ornaram a História nacional sobretudo ao longo dos séculos XV a XVII. São crónicas importantíssimas, testemunhos vívidos dos acontecimentos, imprescindíveis para a compreensão dos empreendimentos começados pelo Infante D. Henrique que dariam a Portugal três séculos de glória e o reconhecimento actual de ser o país do mundo a iniciar a época da primeira globalização.

Mas para o leitor contemporâneo comum, essas crónicas são de leitura nem sempre fácil ou cativante. E aqui reside o primeiro mérito de José Ruy: transformar um relato de viagem do século XVII em algo emocionante que prende o leitor ao longo das 104 páginas que compõem a obra. Para isso contribui não só a história em si como as capacidades narrativas do autor que consegue manter-nos colados ao livro à espera de um desfecho imprevisível, já que, oficialmente, é ao barão sueco Adolf Erik Nordenskjöld, em 1879, e ao famoso Roald Amundsen, em 1920, que são atribuídas as primeiras viagens bem-sucedidas pela Passagem do Nordeste.

A narrativa de José Ruy recorre inteligentemente às muitas peripécias que coloriram a perigosa viagem do capitão David Melgueiro e da nau “Padre Eterno”. Entre várias tempestades que quase levam ao naufrágio, uma rebelião da tripulação instigada por um passageiro, as brigas entre os marinheiros devido à existência de uma mulher jovem a bordo, confrontos com ursos polares, ataques de tubarões, fome, frio e ficarem presos no gelo durante semanas, o leitor não cessa de se maravilhar com a capacidade de resiliência de toda a tripulação e passageiros.

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