Crítica ao filme Lupin III: O Castelo de Cagliostro, realizado por Hayao Miyazaki.
Estreia na Quinta-Feira, dia 18 de Abril, nas salas de cinema, a primeira longa-metragem realizada por Hayao Miyazaki, em 1979, Lupin III: O castelo de Cagliostro (Rupan sansei: Cagliostro no shiro), numa versão remasterizada. Poderei estar enganado, mas de acordo com as informações recolhidas, este filme nunca circulou em Portugal, salvo, talvez, uma mostra num festival, ou uma sala de aula (acuso-me!). Também não houve edição em VHS ou DVD, que eu saiba, e já não está disponível na Netflix, possivelmente pela razão desta sua recuperação técnica e comercial.
Tratando-se de um filme anterior à fundação do estúdio Ghibli em 1985, não podemos esperar algumas das características ou temas-chave perenes da obra “autoral” de Miyazaki, ou “voz própria”, que o historiador Christopher Bolton sumariou como sendo “um ambiente de fantasia, temas ecológicos, uma heroína forte mas sensível, e cujos poderes se expressam através de cenas aéreas exuberantes, e uma mensagem de empatia pela natureza e pelas outras pessoas, envolta na compreensão da usual crueldade e indiferença do mundo” (Interpretting Anime). Na verdade, Cagliostro deveria ser um dos “produtos” associados à franquia Lupin III, que nasceu nas páginas da banda desenhada, mas veremos como este filme não é, de forma alguma, apenas um sub-produto, no sentido de um item comercial (o Ware de Marx, ou commodity) em torno de uma propriedade intelectual nas suas desdobragens comercializáveis.
A personagem Lupin III, e o seu mundo narrativo, nasceu em 1967, nas páginas de uma mangá dirigida a um público mais adulto, mesclando humor, sedução e acção, pelas mãos de um autor cujo nom de plume é Monkey Punch (Kazuhiko Katô). Muito rapidamente seria adaptada a uma série televisiva animada (de que mais de uma dezena de episódios foram realizados por Miyazaki) e a um par de filmes de animação, e também um de imagem fotográfica. Lupin III é, supostamente, um descendente (neto) daquela grande personagem da literatura pulp francesa da primeira década do século XX, Arsène Lupin, um ladrão “gentleman”, mestre do disfarce e, de certa forma, detective comme même, criado por Maurice Leblanc. Lupin III, vivendo na década de 1970, é também retratado como um mestre da gatunagem internacional, e habituado a grandes apostas e à vida na alta roda. Nas aventuras de banda desenhada, existem umas quantas personagens recorrentes, como o companheiro Daisuke Jigen, o samurai taciturno Goemon Ishikawa XIII e a igualmente talentosa para o crime Fujiko Mine. E o seu arqui-inimigo, claro, o inpector Zenigata, da “prefeitura de Saitama”. Se nas histórias de papel estas personagens têm uma complexa relação triangulada de traições, rivalidades quase-mortíferas e elos menos contínuos, nas versões animadas acabam por seguir características mais típicas de um grupo de amigos, quase um bando coordenado (à la Dirty Dozen, A-Team, ou até Firefly), unidos por um objectivo comum.
Com efeito, o filme de Miyazaki traz ao ecrã uma versão muito amistosa destas personagens. A cena de abertura é simples e concentrada e, por isso mesmo, incrível. Em uns poucos minutos, percebemos a eficácia dos golpes de que Lupin III e Jigen são capazes, assaltando um casino e preparando uma das fugas mais espectaculares que se possam imaginar, revelando o Fiat III como um bastante credível escape car. Um toque do realizador, atenção, já que a personagem conduziria outros veículos, antes e depois. Mais, o roubo revela-se pouco rentável, mas lança desde logo uma das pistas para toda a narrativa do filme, notas falsas. Mas estas acabarão por ser o proverbial MacGuffin, pois o cerne da história será outro, mostrado logo de imediato. Seguem-se os créditos de abertura do filme, mostrando uma road trip que serve para assinalar, em parte, o tom algo bucólico que o filme irá explorar em alguns momentos, e logo a seguir desemboca na nova aventura: o cruzamento por acaso com uma aparente noiva (a princesa Clarisse) em fuga num Citroën dois cavalos, atrás da qual seguem sequazes do vilão principal (saberemos depois que é Conde Cagliostro) e a acção começa. Não poderia ser mais eficaz a velocidade e clareza com que os objectivos da aventura são apresentados. Mais, diria, esta cena de perseguição de carros estará nos anais do género no cinema, ao lado de Bullit, The French Connection, The Italian Job, entre outros (não nos esqueçamos que o filme Mission Impossible III presta homenagem a esta versão de Lupin III, ao utilizar o mesmo carro para uma das cenas).
Depois dessa introdução em alta octanagem, seguir-se-ão 90 minutos de acção non-stop, em que todos os elementos concorrem de forma clara numa mesma direcção. Com efeito, assinale-se que o argumento é do próprio Miyazaki (com Haruya Yamazaki, experiente argumentista de animação em televisão), pelo que queremos acreditar que a qualidade excepcional da narrativa também será da sua responsabilidade. Miyazaki já tinha larga experiência no mundo da animação, tendo sido os jovens portugueses da década de 1970 testemunhas desse trabalho quer com a série Heidi (realizado por Isao Takahata, compagnon de route para toda uma vida) quer com a extraordinária Conan, o Rapaz do Futuro. E mesmo que Lupin III seja ainda baseada numa obra alheia, a responsabilidade do enredo coube ao realizador, num primeiro passo em direcção a um trabalho verdadeiramente autoral.
Uma das primeiras características é a forma como filme voga, confortavelmente, por entre vários géneros. Se é, em termos globais, uma aventura, esta desdobra-se ora em dimensões de comédia (por vezes física, slapstick, etc. – conheceria Miyazaki Louis de Funès?), ora de thriller misterioso e, claro, drama romântico. Daí que a comparação com James Bond, recorrente, faça algum sentido – recordemos que estamos na era de Roger Moore, inigualável a qualquer outra neste equilíbrio de tons, sobretudo o humor. Todos estes elementos ou tons contribuem de maneira a sentirmos um ritmo variado, alterações de flow, mas sempre, sempre, a serviço da história, e fazendo-a avançar com entusiasmo.
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Autor, crítico, curador e docente de banda desenhada…