
Análise de A Estrada, de Manu Larcenet.
A Estrada, de Manu Larcenet (baseada na obra de Cormac McCarthy) é daqueles livros que surgem logo com uma herança pesada: tem de ser, pelo menos, tão bom quanto a adaptação que Larcenet fez de O Relatório de Brodeck (ver artigo “E quando não há heróis?!“), galardoado nas 3 principais categorias dedicadas às obras estrangeiras na 3.ª edição dos Prémios Bandas Desenhadas.
Uma estrada é algo que nos leva a algum sítio (parece de La Palice), a algum objectivo, mesmo quando apenas passeamos por ela, sem destino aparente.
Mas a Estrada de Manu Larcenet (ignoremos agora que a obra, originalmente, foi escrita por McCarthy), parece levar a lugar algum. Num mundo pós-apocalíptico, uma estrada é tão má a Norte como a Sul e a humanidade, tendencialmente, segue os adjectivos dos pontos cardeais.
Num mundo pós-apocalíptico, não é o espaço que cura, mas o correr do tempo. Não é uma questão de a estrada estar vazia, sem movimento, sem carros ou pessoas a circular. É a questão de que à beira da estrada tudo está morto, não há quaisquer sinais de vida, nem sequer ervas daninhas que até preencheriam a paisagem de verde. À beira da estrada nem sequer há cor!
Se ler O Relatório de Brodeck é uma experiência dura, esta adaptação do Pulitzer de McCarthy revela-se ainda mais dura.
Sem quaisquer artifícios ou extras, a edição que a Ala dos Livros acaba de publicar (cf. sinopse e previews da edição nacional aqui) nem por isso deixa de ser muito cuidada em termos da arquitectura do livro – até as guardas e as páginas finais em branco deixam sentir o imperativo do silêncio. Aliás, esta é uma obra para ler em reclusão. Nem os passarinhos lá fora se devem poder ouvir. Só assim, a experiência será completamente imersiva, como é provável que seja o desejo dos autores.
Repito agora o que disse para a obra anterior do autor: “Preparem-se, então, para vários murros no estômago.”

Vamos à história!
Se alguém tem dúvidas, o pós-apocalipse é assim!
Não há azul, não há rosa ou laranja. Nem sequer há branco! As nuvens que preenchem o céu são negras e cinzentas e a fuligem que se lhes pega confere-lhes uma densidade quase sólida.
Não há maneira de lhes fugir pois elas revolteiam-se pelo mundo, criando uma atmosfera quase irrespirável.
Sob este céu, à beira da estrada, pai e filho dormem debaixo de uma lona que tenta improvisar uma tenda. Enquanto a criança dorme, o homem acorda para apenas prosseguir com a sua monótona, mas indispensável, rotina diária – perscrutar o horizonte em busca de movimento e, caso o detecte, afastar-se dele. Mas naquela manhã não detecta movimento através dos seus binóculos. Apenas uma paisagem desoladora, desprovida de vida, uma natureza morta rica em vestígios retorcidos de uma civilização deixada para trás. Tudo sem cor, sob o pesado manto do silêncio absoluto.
A criança acorda. É altura de levantarem o “acampamento” e seguirem por aquela estrada. Segundo o pai, ali não poderão ficar pois não conseguirão sobreviver a outro Inverno. Há que seguir para Sul (como se as nuvens de cinza e a desolação obedecessem a pontos cardeais).
Com o seu carrinho de supermercado a transbordar com tudo o que lhes resta (algumas mantas, um revólver e com o que se aguentarem apenas por uns dias), pai e filho prosseguem o seu caminho em direcção a uma quimera. Para sobreviverem, para manterem o moral e aguentarem a dura prova que se abate sobre os seus corpos, têm de acreditar em algo, e esse algo é o Sul. Por cidades destruídas, pontes e viadutos vazios, postos de gasolina abandonados, em direcção a Sul, pela Estrada, sempre pela Estrada. Com o pouco de bom e tudo de mau que ela tem para lhes oferecer…

Se há autor em que consigo pensar para fazer a adaptação de A Estrada para a Nona Arte, esse autor é Manu Larcenet. O romance pós-apocalíptico de Cormac McCarthy descreve o dia a dia de um pai e do seu filho a tentarem sobreviver num mundo desolado e brutal. Um mundo que quase não o é; desprovido de vida animal e com humanos que só o são apenas por se inserirem nessa espécie. O soberbo e desconcertante romance de 2007 de McCarthy foi um sucesso imediato, seguindo-se-lhe em 2009 a adaptação cinematográfica com Viggo Mortensen como protagonista. Agora em Banda Desenhada, Manu Larcenet mostra-nos estar no pico da sua arte – narrativa e gráfica.
E se é habitual dizer-se que não se deve julgar um livro pela capa, neste caso, caro leitor, é inevitável que o faça. A capa de A Estrada é um extraordinário exercício de síntese do que pode encontrar no interior – um pai e um filho errantes, em silêncio, através de uma paisagem desoladora. E, apesar disso, a ilustração é de uma beleza incontestável, lembrando os melhores trabalhos do grande ilustrador oitocentista, Gustave Doré.
Não se pense, no entanto, que a adaptação de A Estrada é algo fácil! Este trabalho de Larcenet mostra-nos, com grande perfeição, como é possível misturar de tal modo narrativa e desenho que ambos se acabam por confundir. A adaptação do universo do autor americano é muito fiel, mas troca a palavra pelo traço. Se lermos a obra de McCarthy ao mesmo tempo que a de Larcenet, vemos que cada vinheta comporta na perfeição as palavras do escritor substituídas pelo desenho.
Um bom exemplo é logo o da primeira página na qual, numa espécie de elipse gráfica, Larcenet mostra-nos o tempo a passar, de forma pesada e repetitiva, sem esperança, através de quatro vinhetas onde só vemos nuvens escuras e revoltas. Se lermos McCarthy, temos a seguinte frase (tradução minha): “Noites escuras para lá da escuridão e os dias mais cinzentos, cada um mais do que o anterior.”

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Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.