Análise de Corto Maltese: A Rainha da Babilónia, de Martin Quenehen e Bastien Vivès.
A Rainha da Babilónia é o título do mais recente álbum de Corto Maltese, versão novo milénio da nossa era.
Precisamente, a nossa parece ser uma era de secura. Os enlatados televisivos, a que as produtoras resolveram apelidar de “reality shows” hipnotizam as massas, parecendo sussurrar-lhes ao inconsciente “vive a vida dos outros porque a tua não vale a pena viveres!” E qualquer um pode apelidar-se de “influenciador”, sobrevivendo de “likes” de espectadores que se limitam a carregar num botão. Toda a gente segue toda a gente e estranhos são aqueles que sabem ler e escrever correctamente, que conseguem estar mais de uma hora sem olhar para qualquer ecrã ou que não limitam o grosso da sua vida a meros videojogos.
Felizmente, para o bem e para o mal, ainda há no mundo quem pense. Pense o presente, o passado e o futuro. Neste sentido, fruto da época, somos por vezes tentados a suprimir do presente coisas do passado que ainda por cá andam.
Corto Maltese, o herói criado por Hugo Pratt em 1967 tem as suas aventuras situadas nas três primeiras décadas do século XX. Uma época ainda de descobertas, de expedições a sítios desconhecidos, de piratas, do estertor final dos grandes impérios. Uma época de romantismo aventureiro, no qual os heróis ganham uma dimensão universal.
Bons tempos, dirão uns! Tempos que não voltam mais, dirão outros.
Na verdade, uns e outros não poderiam estar mais enganados. O tempo dos românticos aventureiros continua, embora diluindo-se quase irremediavelmente no mundo dos likes-reality-shows-videojogos.
Um bom exemplo é precisamente a figura de Corto Maltese. A série tradicional continua a ser publicada com novas aventuras, mas, paralelamente, Martin Quenehen (argumento) e Bastien Vivès (desenho) criaram uma série na qual o herói é não só nosso contemporâneo como habita no novo milénio.
Oceano Negro foi a primeira aventura (ver artigo “O espírito de Corto Maltese“), sendo que a Arte de Autor publica agora a segunda – A Rainha da Babilónia (cf. sinopse e previews da edição portuguesa aqui) – onde se inclui um caderno de extras com um artigo de Jean Hatzfeld (jornalista e correspondente de guerra na Bósnia Herzegóvina nos anos 1990) e várias aguarelas de Bastien Vivès..
Convido-vos, pois, a constatarem como o romantismo aventureiro continua bem vivo no século XXI.
Vamos à história!
Em Corto Maltese – A Rainha da Babilónia, estamos em Veneza, em Outubro de 2002.
Os lábios tocam-se primeiro com a suavidade possível dos apaixonados, para logo de seguida as bocas se abrirem num fogo incontrolável. Os corpos roçam-se e volteiam-se ali mesmo, enquanto as mãos agarram e puxam numa urgência em desacordo com o local – o meio da rua.
Corto Maltese não está para festas e prefere ir com Semira para um local mais recatado. Mas ela está em missão e a glamorosa festa no iate é o seu objectivo. Apressam-se!
Já lá dentro, separam-se. Corto dá de caras com Celo, o bósnio amigo de Semira. Estrategicamente posicionados, os dois homens observam os generais sérvios e a chegada dos seus clientes, os serviços de segurança iraquianos. Mas Corto também repara no grupo de bósnios que espiam os sérvios. Veneza parece a Babilónia e aquele iate a torre de Babel. O tráfico dos Balcãs passa por ali: armas, drogas, mulheres…
Depois de cheirar uma fila de coca, Celo deixa correr a sua veia filosófica e compara o amor às pontes: “Dizem que elas ligam as pessoas, mas só servem para deixar passar os carros de assalto”. A tirada é para Corto, mas este ignora-a e vai à procura de Semira.
Por seu lado, Semira está ocupada a “montar” um homem. Pelo menos é essa a percepção de Corto quando irrompe pelo quarto. Na verdade, ela acaba de o assassinar; faca na jugular. Os dois têm agora de se desembaraçar do cadáver. E nada melhor do que deitá-lo borda fora. Semira acaba de recuperar aquilo que a tinha levado ali – a data e o local da transacção. Ela pede então a Corto para deitar o morto ao mar e seguir-lhe os passos, como melhor meio de fuga. E é isso mesmo que Corto faz.
Na manhã seguinte, um táxi aquático espera por Corto para o levar até um Zodiac. O condutor dá-lhe roupa fresca e um telefone com o número de Semira gravado. Ela espera-o em Rabac, na costa croata, e informa-o que a transacção entre os iraquianos e os sérvios se mantém e terá lugar num barco carregado de armas e notas. Semira convida-o para participar na operação. Corto responde “talvez”…
Situando as aventuras de Corto Maltese nas primeiras décadas do século XX, Hugo Pratt pôde cultivar o idealismo do seu herói. O século era jovem e os amanhãs de esperança alicerçavam-se na “guerra para acabar com todas as guerras”. Da cidade “Sereníssima” à imensidão nostálgica do Pacífico, Corto Maltese parece viver uma vida de aventuras, sem horários, ao sabor do tempo que corre sem pressas, irremediavelmente romântico.
Pelo contrário, Martin Quenehen e Bastien Vivès não se podem dar a tal luxo, num século XXI que começa já explosivo e desesperançoso.
Aqui, o romantismo aventureiro parece, inevitavelmente, coisa do passado e os ritmos de vida são outros. Mas, quando um pirata passa a corsário e obtém as suas cartas de corso de uma rainha com sotaque bósnio e de nome que remete para a rainha fundadora da Babilónia, o tom do romantismo aventureiro volta a encontrar lugar no novo século.
Dos canais de Veneza à costa edílica da Croácia e às ruínas da Babilónia, Corto Maltese viaja não só entre lugares, mas também entre reencontros pois, um personagem que é global, acaba por encontrar amigos, conhecidos e amantes um pouco por todo o mundo.
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Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.