Análise de O Vento nos Salgueiros, de Michel Plessix.
O Vento nos Salgueiros, de Michel Plessix, e baseado na obra homónima de Kenneth Grahame, emana uma magia difícil de descrever.
Quando temos uma certa idade ou, pelo menos, conseguimos perspectivar a vida em termos cronológicos, o nosso percurso pode trazer-nos surpresas mágicas. E é isso que aconteceu recentemente comigo quando reli O Vento nos Salgueiros, agora em versão integral publicada pela Arte de Autor (cf. sinopse e previews da reedição nacional aqui).
Antes de ler a Banda Desenhada em francês, e agora em português, lembro-me muito bem de ver a série animada em stop motion que passava na RTP. E lembro-me também do bem-estar que me provocava ouvir o genérico da série cantado por Jorge Palma.
Para a minha alma de criança, o mundo passava a ser um lugar de paz, sem conflitos e apenas com problemas facilmente resolvíveis. A questão é que cheguei agora à conclusão que a minha alma de criança já não existia quando a série passou na televisão. Estava no começo da adolescência e os meus interesses não comportavam então narrativas infantis.
Então, porque é que toda a minha vida parava quando era imitido novo episódio de O Vento nos Salgueiros? Podia estar aqui a dizer-vos que era uma espécie de retorno à infância, uma questão de urgência nostálgica semanal ou outra qualquer razão do foro psicológico. Mas prefiro acreditar em um dos versos de Jorge Palma que diz “…pareces saber os contos certos e como os contar/aos que ainda querem sonhar”.
E é precisamente isto que acontece nesta versão d’O Vento nos Salgueiros de Michel Plessix. É impossível não sonharmos!
Vamos à história!
Como em todos os inícios de Primavera, o Toupeira arregaçou as mangas e começou a grande limpeza anual da sua casa. Mas, exaurido pelos fortes espirros provocados pelo pó, resolve ir apanhar ar.
Como em todos os inícios de Primavera, ao abrir a porta da rua, o espectáculo que se lhe apresenta deixa-o maravilhado. O sol banhava finalmente a pradaria verdejante que transbordava de vida. O tempo ameno e o perfume das flores envolveram o Toupeira e convidaram-no a passear sem destino, calmamente, apenas observando a labuta dos outros. Pássaros constroem ninhos, os coelhos aprovisionam as suas tocas…
O Toupeira acaba por se sentar na margem do rio. Sonhador, perde-se nos seus próprios pensamentos que fluem como um curso de água. De repente, do pontão que fica na outra margem do rio, é interpelado pelo Rato. Este apresenta-se cordialmente e logo convida o Toupeira para um passeio de barco seguido de um piquenique à beira-rio. O Toupeira está entusiasmado e não se arrepende nada de ter aceite o convite do Rato. Afinal, é muito mais agradável um passeio e uma boa conversa do que as limpezas primaveris.
No percurso, enquanto conversam tranquilamente, o Toupeira observa um bosque denso e frondoso. O Rato explica-lhe que aquele é o “bosque selvagem” e que raramente vai lá. Embora seja povoado por boas pessoas e pelo seu amigo Texugo, é também o lar de animais de pouca confiança, como as doninhas, os fuinhas e os arminhos.
Por fim, acabam por encontrar o lugar ideal para o piquenique. A toalha é colocada na relva e o Toupeira, cheio de fome, prepara-se para morder uma generosa sanduiche, mas acaba por apanhar um dos maiores sustos da sua vida. Da água, sem qualquer aviso, salta o Lontra, amigo do Rato, e com muita vontade de participar no piquenique.
Enquanto conversam agradavelmente, o Texugo surge por detrás da mata. Rabugento, não está para conversas e afasta-se. O Lontra acaba por dizer-lhes que se cruzou com o Sapo que estava num bote. Parece que as embarcações são a nova mania do Sapo. E, precisamente, enquanto falam dele, lá está o Sapo, ao longe, completamente atrapalhado com os remos. O Lontra apressasse a ir salvá-lo e os dois novos amigos aproveitam para iniciar a viagem de regresso a casa. Uma viagem que tem ainda mais uma peripécia e termina com o Rato a convidar o Toupeira para passar uma temporada em sua casa. Este aceita emocionado. Primeiro, à volta de uma boa mesa e depois, em frente à lareira, o Toupeira sente que aquele fora um dia maravilhoso e que as aventuras com o seu novo amigo estavam apenas a começar…
Antes de mais, O Vento nos Salgueiros é, originalmente, um clássico da literatura infantil britânica, da autoria do escocês Kenneth Grahame, publicado em 1908. Os seus personagens principais, antropomórficos, são o Toupeira, o Rato, o Texugo e o Sapo.
Desde que foi publicada pela primeira vez, a obra foi adaptada inúmeras vezes para teatro, rádio, cinema e televisão, destacando eu a magnífica série de televisão em stop motion, emitida entre 1984 e 1990.
Entre 1996 e 2001, Michel Plessix publica a sua versão em banda desenhada que, quanto a mim, é a síntese perfeita entre o original de Grahame e a série de TV de 1984.
A adaptação para banda desenhada parece fácil, mas, como poderão constatar, foi muito laboriosa.
O importante é que a essência da obra original está toda lá e Plessix tem a incrível capacidade de a manter quer em termos narrativos quer criando um universo gráfico que os menos atentos suporão ser o da obra de 1908, mas que, na verdade, é um universo gráfico original, resultado de uma grande depuração dos muitos que ilustraram a obra ao longo de mais de 100 anos.
As aventuras dos quatro amigos correm ao ritmo das estações do ano, muito pontuadas pela poesia da natureza. E aqui reside uma originalidade na obra de Plessix: é uma banda desenhada, a única que conheço, que pode ser lida a uma criança como uma “história de deitar”.
As descrições da natureza são tão bem feitas que logo nos remetem para uma Inglaterra bucólica que tantas vezes vimos em “séries da BBC”. Estas descrições pontuam e contextualizam a acção, criando no leitor (ou, no caso das crianças, o ouvinte) uma sensação quase inexplicável de nostalgia e bem-estar. Vejam o exemplo:
“Estava uma bela tarde de final de Outono. Um frio seco arranhava as faces do Toupeira. Ele nunca vira o campo assim… Tinha a impressão de estar a descobrir a essência das coisas… Os pequenos vales, as matas, até ali tão secretos, ofereciam-lhe agora a sua intimidade mais escondida…”
Enquanto corre esta descrição, o Toupeira acaba por se embrenhar no sítio para onde não poderia ir – o Bosque Selvagem. Aquele sítio que, em tempos medievais, era considerado o lar das bestas, o recreio dos monstros.
E é esta a eficácia da narrativa. Com uma mão dá-nos poesia e bons sentimentos e com a outra instala o receio. Se bem que este é prontamente resolvido.
Não procurem por isso, nos cinco primeiros capítulos, uma intriga muito elaborada. Tudo aqui é uma espécie de ode ao doce correr do tempo, à natureza que acompanha as estações do ano, e à harmonia do campo silvestre. Um passeio bucólico que é acompanhado, a maior parte das vezes, por uma voz-off doce e lírica.
Contudo, do sexto capítulo em diante, a narrativa ganha um ritmo mais acelerado, muito devido ao Sapo e às suas constantes tropelias. Amigável e muito comunicativo, ele é também caprichoso, egoísta e obsessivo. As suas obstinações extravagantes têm agora como objecto de paixão os automóveis. E levam-no, inclusive, a ultrapassar a fronteira do seu microcosmo e a colocar a vida de outros em perigo. Os amigos intervêm e mantêm-no em prisão domiciliária, mas o Sapo acaba por fugir, rouba um automóvel a um humano e acaba por ser apanhado pela polícia e condenado em tribunal a vinte anos de reclusão.
Tal como nos capítulos anteriores e nos que se seguem, a amizade é talvez o sentimento mais constante e durável na narrativa. Toupeira, Rato e Texugo fazem tudo ao seu alcance para manterem o Sapo fora de confusões. E mesmo depois de o Sapo ser preso, a preocupação dos amigos não cessa. A narrativa ganha então um pouco de músculo através da problemática e demente obsessão automobilística do Sapo. E Grahame e Plessix aproveitam para nos fazerem passar a ideia anti-automóvel. Grahame porque, provavelmente, gostava pouco da máquina barulhenta e fumarenta. Plessix porque, quase 100 anos depois, se preocupa com questões ecológicas.
Mas a acção não se desenvolve apenas à volta das loucuras do Sapo. No capítulo VII, “A Hora Azul”, vemos o Rato e o Toupeira à procura do filho desaparecido do Lontra. É o capítulo em que regressa a poesia da natureza, agora num tom nocturno. Mas é também o momento em que a história ganha contornos mágicos e mitológicos com o encontro que os dois amigos têm com um gigantesco deus Pã, para ele atraídos pela música da sua flauta. O ambiente onírico serve de interlúdio às aventuras do Sapo, mas também como afirmação dos elementos centrais que caracterizam toda a narrativa – a poesia campestre e a nostalgia.
Use os botões para navegar entre as páginas do artigo.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.